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Como conduzir a narrativa por meio de recursos do sistema

Eu sou um mestre e um jogador de RPG que adora conhecer sistemas de regras. Dos tipos de Mestres que o Bini apresentou por aqui um tempinho atrás, eu sou, principalmente, o Mestre dos Sistemas. E narrando e estudando Hitos, o sistema de Cultos Inomináveis, publicado aqui no Brasil pela Buró, me deparei com uma ideia interessante: conduzir a narrativa por meio de recursos do próprio sistema.

Apesar de ser interessante conhecer Cultos Inomináveis para entender aonde quero chegar com este artigo, isso não é necessário. Vou utilizar esse cenário aqui mais como exemplo de uma ideia de jogo do que como tema central. Ao final explico quando é possível utilizar essa proposta em com outros sistemas. Então, se você não conhece Cultos, não leu este outro artigo meu aqui sobre ele ou simplesmente está com preguiça de fazer isso, tudo bem, vamos começar pelo básico.

Já clássica imagem de um mestre de RPG, de Victor Maury.

O que é um recurso e uma mecânica em um sistema de RPG

Antes de tudo, deixe-me esclarecer o que pode ser encarado como recurso e como mecânica em um sistema de RPG.

Recurso, conforme o dicionário, é tanto um auxílio, uma forma de resolver um problema, quanto um meio financeiro. Logo, podemos entender “recurso” como uma ferramenta limitada para ajudar em situações complexas.

Também de acordo com o dicionário, mecânica é a aplicação prática dos princípios de uma arte ou ciência. Vamos encarar “mecânica” no RPG, então, como um determinado conjunto de regras que põem em prática a proposta de jogo de um sistema.

Agora juntando as duas coisas, podemos dizer que quando um sistema de RPG se utiliza de mecânicas que funcionam como um recurso, o mestre e os jogadores têm uma quantidade limitada de oportunidades de se utilizar de determinado conjunto de regras.

Os testes em um sistema de RPG

Um sistema de RPG pode ser entendido como um conjunto de regras que dá um meio de dizer se personagens conseguem ou não realizar determinadas ações narradas por seus jogadores. Claro, essa é só uma de muitas formas de entender o que é um sistema de RPG. Para o que vou abordar aqui, contudo, podemos ficar com ela.

Vamos usar um exemplo para explicar isso. Imagine um personagem perdido em uma cidade que não conhece, às 3:00 da madrugada, com seu celular descarregado e totalmente sozinho. O jogador que o interpreta provavelmente dirá que ele irá procurar por um lugar seguro, um abrigo. O jogador, então, narra como o personagem fará essa procura, isso é uma ação. A ação dá certo ou errado, ou seja, o personagem encontra um abrigo ou não, a depender de duas coisas: existir um abrigo na história narrada, o que normalmente é definido pelo mestre, e ele conseguir realizar essa ação. Considerando que existe esse local, resta saber se o personagem o encontrou. Saberemos disso recorrendo ao sistema, nele haverá alguma regra estabelecendo como descobrir o resultado dessa ação.

Normalmente os sistemas estabelecem que essa regra é realizar um teste. Testes geralmente são feitos por meio da rolagem de dados. O resultado dessa rolagem, e, portanto, do teste, dirá, de alguma forma, se a ação narrada alcançou ou não seu objetivo e em que medida. No nosso exemplo, o resultado do teste dirá, no mínimo, se aquele personagem chegou a algum abrigo. O jogador pode ter tirado um resultado que indique que o personagem ainda está perdido, que chegou ao local ou que está no caminho certo. Isso varia conforme o sistema e a própria narrativa da história.

Os testes em Cultos Inomináveis e o Drama

Ilustração de Borja Pindado Arribas para o livro de Cultos Inomináveis.

Os testes no sistema Hitos são feitos rolando três dados de 10 faces (3d10). O número médio da rolagem (exemplo: em um resultado 3, 6 e 9, o médio é 6), chamado de Central, é somado aos valores de alguma característica e de alguma habilidade do personagem que se encaixem na ação narrada. O resultado do teste é, então, comparado a um valor de dificuldade (Classe de Dificuldade, ou CD) definido pelo mestre. Se igual ou superior à CD, a ação é bem-sucedida, se inferior, malsucedida. Portanto, quanto mais difícil a ação, maior a CD do teste.

Há uma forma de alterar essa regra: gastar um ponto de Drama e aplicar à narrativa da ação algum detalhe da história do personagem ou a descrição de uma característica ou habilidade dele, de algum objeto ou do ambiente, que possa influenciar a ação. Esse detalhe ou descrição é chamado de aspecto e ao fazer isso o jogador estará ativando algum. Por exemplo, se um personagem tem o aspecto “Maratonista” e tentar correr de um bandido, seu jogador pode ativar esse aspecto gastando um ponto de Drama.

Ao fazer isso o jogador pode rerolar quantos dados do teste quiser e se utilizar do maior número rolado ao invés do Central. Além disso, se tirar dois números repetidos eles são somados e a soma passa a valer como o resultado de um dos 3d10.

Cada jogador começa, em regra, com cinco pontos de Drama e os recupera se sofrer inverso do que descrevemos: em troca de receber um ponto de Drama, o mestre ativa algum aspecto que prejudique a ação do personagem, forçando o jogador a rerolar os 3d10 de um teste e utilizar o menor resultado deles ao invés do Central.

Utilizando o Drama para conduzir sua narrativa de Cultos Inomináveis

Se você entendeu bem a mecânica de aspectos no Hitos, percebeu que é arma poderosa dos jogadores para superarem desafios. Afinal, ao ativar um aspecto as chances de sucesso em um teste passam a ser bem mais altas.

Por essa mesma razão os jogadores costumam querer sempre ter alguns pontos de Drama à mão, estando dispostos, portanto, a se prejudicar para recuperar alguns. Sendo assim, o Drama é também um recurso precioso do mestre para manipular a sua narrativa.

Em Cultos Inomináveis o mestre pode alterar as chances de sucesso em testes duas formas: entendendo que determinado aspecto é aplicável à ação narrada ou, ao invés disso, concedendo um bônus ao teste do personagem que realiza a ação. Escolher por uma forma ou por outra pode alterar drasticamente sua narrativa.

Em um teste de CD alta, é provável que o jogador precise ativar algum aspecto para seu personagem ser bem-sucedido em sua ação. Como mestre, você pode entender que o aspecto é aplicável à narrativa e permitir que o jogador gaste esse recurso. Fazer isso significa esgotar o Drama do jogador, podendo, assim, deixá-lo sem ter como utilizar esse recurso no clímax da aventura ou, talvez, forçá-lo a prejudicar seu personagem em algumas ações determinadas em troca de pontos de Drama.

Seguindo o outro caminho e dando bônus aos personagens ao invés de aceitar a ativação de um aspecto, você permite que os jogadores guardem o Drama. Logo, quando o clímax chegar, os personagens podem tomar atitudes mais ousadas, pois os jogadores conseguem ativar aspectos para buscar garantir sucesso em suas ações. Portanto caso queira quiser tornar determinado desafio difícil ou buscar que os personagens falhem em fazer determinadas ações enquanto narrar Cultos Inomináveis, busque equilibrar os desafios anteriores lembrando de esgotar ou não os pontos de Drama dos jogadores.

Aplicando essa lógica em outros sistemas

O icônico estilo de Steve Stivaktis para fazer ilustrações de RPG já viralizou por toda a internet.

Hitos não é o único sistema que tem a mecânica de aspectos. FATE, publicado por aqui pela Solar Entretenimento, faz o mesmo. Entretanto nem todo sistema utiliza essa mecânica especificamente. Porém isso não significa que apenas sistemas de RPG com aspectos se utilizem da lógica que expliquei aqui.

A 5ª edição de Vampiro: A Máscara, em pré-lançamento pela editora Galápagos, tem uma mecânica chamada fome. Se o personagem tem pontos de fome, ele substitui os dados padrão utilizados nos testes por outros cujos resultados de falha e sucesso são mais dramáticos. Um narrador de V5 pode se aproveitar disso deixando os personagens famintos e gerando momentos mais intensos em sua aventura.

Blades in the Dark, atualmente em financiamento coletivo pela Buró, tem uma mecânica chamada estresse. Ao fazer uma ação, o personagem pode receber pontos de estresse em troca de ter vantagens para realizar seu teste. Se acumular muito estresse, sofre um trauma, o que afeta suas ações futuras. Dessa forma os jogadores costumam medir bem o risco de estressar seus personagens e se o mestre abusar de situações perigosas pode causar muitos traumas aos jogadores e criando uma atmosfera mais pesada à narrativa.

Perceba, assim, que você sempre poderá manipular a narrativa do jogo se utilizando de uma determinada mecânica do sistema de RPG caso ela seja efetivamente um recurso utilizável pelos jogadores e se ela tiver reflexos na forma como os personagens deles são interpretados ao realizarem suas ações.

Conhece mais sistemas com essa dinâmica? Me diz aí por favor, pois achei algo extremamente interessante e pretendo explorar mais ele!