Conto – Arabella: a Jornada da Tiefling
A primeira lembrança de Arabella é composta por imagens de mãos longas e elegantes segurando as suas, pequenas e frágeis, enquanto uma voz suave cantava em seus ouvidos; o cheiro de algo delicioso de alguma refeição ficando pronta; a iluminação leve e aconchegante que enchia a pequena casinha apenas o suficiente para sugerir a promessa de descanso.
A pequena tiefling levantou a cabeça para olhar para sua mãe, e foi imediatamente acolhida por olhos da cor do sol – tão parecidos com os seus. Arabella ainda não sabia que o nome da tiefling adulta em sua frente era, nem sabia que era ela mesma uma tiefling – mas sabia que aquela era sua mãe, que ela a amava, e que estava segura em seus braços.
Sem registrar suas próprias emoções, percebeu que uma pequena flama saiu de sua mão – algo que acontecia quando estava muito feliz ou muito triste, com muito medo ou alegria. Agora, assustada, seus olhos encheram de lágrimas, mas sua mãe não a repreendeu nem pareceu brava. Em vez disso, ela sorriu, beijou sua testa e produziu, em sua própria mão, uma outra chama – linda e poderosa. Assim era sua mãe: aceitava – não, celebrava a magia de Arabella assim como todo o resto que ela era.
Sua mãe voltou a cantar, apertando as bochechas de Arabella levemente e sorrindo. Gargalhando e tentando cantar junto, a criança levantou os braços e colocou suas mãos ao redor dos lindos chifres de sua mãe – cheios de jóias e ouro. Arabella queria ter chifres bonitos como aqueles um dia, pensou. Puxando levemente, trouxe o rosto de sua mãe perto ao seu, e suas testas se tocaram em um gesto que era somente delas – permaneceram assim, cantando em sussurros, até que Arabella caiu no sono.
E então, veio o frio.
Depois que sua mãe desapareceu, o escolhido para criar Arabella – por algum motivo que ela nunca entenderia; talvez falta de opções? – foi um suposto tio distante. O homem nunca tinha tido filhos, e não parecia ansioso para começar agora. O lar nunca foi cheio de amor ou afeto, mas o humano cumpria sua função até onde os outros adultos na vida de Arabella no momento se interessavam: fornecia abrigo, comida e vestimentas mínimas. Conforme Arabella foi crescendo, passou a ficar responsável por tarefas ao redor da casa e do território de seu tio.
Naturalmente uma menina cheia de energia, achava jeitos de produzir sua própria diversão nos dias sozinha na pequena cidade. Tudo foi feito para reprimir sua magia, mas com o passar dos anos isso se tornou cada vez mais difícil. Arabella, que sempre sentiu tudo do modo mais profundo e forte, não tinha controle pelas manifestações de sua energia arcana, e a falta de apoio não melhorava sua situação. Logo a vila inteira passou a olhar a criança com ódio, criando histórias e lendas sobre “a menina amaldiçoada” que trouxera má sorte a todos; as outras crianças passaram a reproduzir o que ouviam de seus pais, e a raiva do tio por Arabella só crescia e crescia. Tudo de ruim que acontecia na vila era atribuído à pequena tiefling. Arabella se tornou a imagem distorcida de uma vilã em um conto do lugar onde vivia e, ano após ano, essa história se tornava mais e mais real nas cabeças dos outros habitantes – e, por mais que ela ainda não percebesse, na de Arabella também.
Com o passar do tempo, a energia infantil de Arabella começou a desvanecer. Sua necessidade de agradar abriu espaço, ao seu lado, para rebeldia. Forçada a viver sozinha em um ambiente hostil e potencialmente perigoso, desenvolveu algumas habilidades, mas no fundo ainda era aquela criança assustada.
Um certo dia, Arabella se encontrava recolhendo os frutos da colheita do ano da vila; todos esperavam ansiosamente essa época, quando as melhores frutas, verduras e legumes chegavam para o consumo. A colheita anual era praticamente o único diferencial da vila onde vivia, atraindo alguns comerciantes no fim do ano.
Em baixo do sol quente, Arabella registrou sem dar muita importância a presença de alguns aldeões na margem do campo. Quatro ou cinco pessoas saindo para um passeio durante a tarde. Logo Arabella percebeu, também, que estavam regusmando entre si sobre ela: “aquele monstro em forma de criança…”; “pestinha insuportável”; escutou. “Por que fomos castigados com ela?”. Mas Arabella continuou trabalhando; já estava acostumada. Tinha desenvolvido, a essa altura, algumas maneiras de manter sua mente ocupada o bastante para ignorar as palavras joagadas em sua direção.
Mas logo aquelas cinco pessoas começaram a atrair outras, e um grupo se formou na beira do campo; as técnicas de Arabella de cantar ou contar até 100 deixaram de funcionar, seus pensamentos sendo atacados por aquelas vozes. Fez seu melhor para focar em sua tarefa, nos padrões presentes nas folhas das plantas ou as formas das nuvens no céu…
Até que uma hora, uma frase chegou em seus ouvidos carregado por uma voz maliciosa: “Claro que nem seus pais te queriam”.
Arabella já havia ouvido isso algumas coisas, e todas elas doeram. Mas agora, algo dentro dela se quebrou e sua fúria, acostumada a viver reprimida dentro de si enquanto crescia, crescia, crescia – começou a fluir. Antes que pudesse pensar, Arabella se virou o olhar de repúdio de dos outros habitantes da vila achou o seu.
“Para”, avisou.
Não pararam. “Mas é verdade! E você sabe que é verdade!” disse um dos meninos, rindo. “Quem iria querer uma menina amaldiçoada? Que estraga tudo que toca?”
Arabella sentia sua paciência evaporando enquanto suas lágrimas caíam.
“PARA DE FALAR”, gritou, suas mãos se transformando em punhos aos seus lados. “Para. De. Falar.”
Todos continuavam rindo. Aquelas malditas risadas, feias e estridentes, se juntando para formar uma só…
“E ainda é mal educada!”, exclamou um dos homens, pai de alguns dos adolescentes presentes, inconformado. “Seus pais olharam pra você e a jogaram fora. Que privilégio!”, exclamou. “Nossa vila não foi tão sortuda.”
Um grupo ao lado começou a recitar uma das canções criadas sobre o mito da Maldição de Arabella, e com cada palavra dita Arabella sentia um calor quase sobrenatural se espalhando por seu corpo e mente; sua magia exigindo passagem.
As próximas palavras de um dos moradores – o próprio tio, o próprio responsável por sua criação há anos – foram quase abafadas pelo som do próprio coração de Arabella em seus ouvidos… mas não completamente, não o bastante para perder seu efeito: “Quando tiver minha chance de nos livrar de você eu vou aproveitar. Igual seus pais fizeram.”
Arabella não lembra com muita nitidez o que aconteceu então; suas memórias desse momento são compostas basicamente por um calor crescente, as palavras ecoando sua mente, e uma pressão familiar que finalmente atingia seu ápice. Então, tudo ficou escuro.
Quando retomou a consciência, não se sentia 100% acordada; achava que nunca mais se sentiria. Com a mente voando e sua própria voz em um grito sem fim na sua cabeça, seus olhos vagamente registraram o campo inteiro ao seu redor incendiado até o chão, todo traço de vida ou verde apagado; nenhuma plantação, de todas as cultivadas por um ano, agora restava. Todas haviam sido substituídas por um círculo gigante de névoa e um chão coberto por cinzas. Viu que o círculo acabava a milímetros de onde estavam os moradores da vila, todos eles gritando e correndo, muitos se distanciando mas alguns já em fúria, parecendo ir em sua direção; dessa vez, o cérebro de Arabella não processou as palavras. Arabella correu. Correu muito, até que suas pernas não aguentavam mais.
Eventualmente, após meses sem rumo e sem companhia, Arabella conseguiu um lugar em um circo itinerante. Conheceu pessoas interessantes e, pela primeira vez, fez amizades – algo inédito em sua vida. A tiefling passou a tocar sua lira em apresentações, mas seus companheiros de circo mais próximos tentavam a convencer a realizar truques de mágica. Arabella não tinha dúvida que, se feitos por alguém competente, algo como aquilo poderia fazer muito sucesso no circo; mas seu medo de si mesma e de sua mágica era maior, e a impedia de tentar. Mais uma vez, trancou essa parte sua e sofreu nos dias em que ela tentava se libertar.
O circo ainda não era grande, e consequentemente suas platéias também não eram das maiores. No entanto, após uma apresentação na estrada, um dos espectadores permaneceu por ali: um monge tabaxi um pouco velho, que começou a conversar com Arabella e mostrou interesse em seus talentos. Arabella agradeceu e disse que se quisesse, ela poderia tocar mais uma canção em sua lira, mas o tabaxi sorriu gentilmente e clarificou: “Quis dizer a sua mágica”.
O tabaxi, que revelou se chamar Lace, era vago quanto ao meio pelo qual percebeu tão facilmente e em tão pouco tempo que Arabella possuía mágica; imediatamente, por instinto, Arabella começou a entrar em pânico ao pensar que não estava mais conseguindo restringir sua magia. Mas então Lace fez, pela primeira vez, algo que faria muito por Arabella; ele a confortou. Não apenas a confortou, como falou de sua mágica de um jeito que só sua mãe, há todos aqueles anos atrás, havia falado antes: com admiração e positividade. O monge passou alguns dias com o circo, conhecendo e conversando com Arabella, até chegar em seu destino: uma torre, alguns minutos fora da cidade, com cômodos pequenos mas aconchegantes e jardins que se estendiam ao redor do prédio. Lá, ele propôs a Arabella que fosse morar com ele; assim, se ela quisesse, poderia ser treinada e aprender a usar sua mágica com controle.
Encantada não só pela possibilidade de ganhar um pouco de controle sobre algo que sempre tinha sido um fardo em sua vida (e que Lace insistia era um presente), mas também pela atenção e carinho que o tabaxi mostrava de forma que nunca tinha tido de uma figura parental, Arabella aceitou. Antes de ir embora, abraçou seus amigos do circo e prometeu que, um dia, voltaria – com sua magia treinada e usável – e ajudaria o grupo.
Arabella passou os próximos anos com Lace, e foram os melhores de sua vida. Lace e Arabella eram completos opostos, e mesmo assim (ou por causa disso), possuíam uma sintonia tão confortável que Arabella não conseguia entender. Lace, calmo e equilibrado, passou a treinar Arabella e, mais que isso, logo se tornou sua família. Ela, inquieta, impaciente e um tanto rebelde, se sentiu pertencente a um lar pela primeira vez. Teve a liberdade de errar e acertar, e receber um abraço de Lace no fim do dia independentemente do resultado. O conceito era tão estranho para Arabella que ela demorou para acostumar. De fato, várias facetas de uma convivência não tóxica eram tão completamente alheias à Arabella, que ela inicialmente só sabia rejeitar algo que tanto precisava.
Mas Lace não desistiu de Arabella, e por isso ela será eternamente grata. Muitas de suas cicatrizes nunca desaparecerão; mas com Lace, encontrou não só treinamento prático (e rígido!) em defesa e uso de sua magia, mas também um mentor e amigo. Os dois podiam se deixar loucos em certas ocasiões, mas criaram uma família única.
Ainda assim, os mesmos pesadelos aterrorizam Arabella e os mesmos pontos de interrogação sobre seu passado a perturbam. Agora, um pouco mais experiente com sua magia, sai em busca de respostas – sobre si mesma, sobre o universo, sobre seu país, sobre as outras pessoas, sobre tudo que puder.
Você pode assistir a Arabella começando por aqui:
Arabella é uma personagem que criei para jogar uma aventura na Twitch da Nuckturp que se passa na 2ª Era de Nindäle e foi mestrada pelo Vitão. Nindäle é um universo de fantasia no qual o mundo estava sofrendo uma alteração temporal por alguns motivos curiosos, e nós, jogadores, deveríamos desvendar esse mistério.
Descubra mais sobre essa e outras aventuras no youtube da Nuckturp.
Nos vemos no próximo post!