As Chaves da Torre Contos

Conto – Capa de Chuva Amarela

Inspirado no As Chaves da Torre RPG, escrevi esse conto usando as cartas que o jogo traz para a gente explorar a narrativa compartilhada.

Carta Tema: Invisibilidade
Cartas de Chaves: Instinto, Ilusão e União

Eu não costumava acordar antes do sol nascer. Quando acontecia eu voltava a dormir ou pelo menos curtir um cochilo gostoso até a hora do despertador tocar. Porém eu já havia cochilado duas vezes, sonhado umas coisas estranhas entre o fechar de olhos e o relógio marca o mesmo tempo a todo tempo. 5h17. O sol não nasce e eu aqui, com a minha energia restaurada pronto para mais um dia.

Me levanto e tomo um banho demorado. Imaginei que meus pais ainda não havia se levantado, pois a casa estava um silêncio e o cheiro de ovos mexidos com pão quentinho não preenchiam minha narina. Aliás, tento me lembrar desses aromas, mas é tão difícil.

Quando decido descer me surpreendo com meus pais na cozinha tomando café da manhã conversando. Penso que devem estar apressados, pois nem colocaram o meu prato e xícara na mesa. Olho para fora e uma luz turva reflete escuridão ao invés do sol dourado de ontem. O que está acontecendo? Penso comigo mesmo. Pego minha xícara, um gole do café e sento ao lado de meus pais para escutar a conversa. Falam de coisas do trabalho e como querem que seja o dia. Dou minha opinião aqui e ali, mas não respondem. Estão focados, eu entendo.

Um assunto me surpreende! Eles começam a falar de ter filhos. Será que terei um irmão? Toco os ombros de minha mãe com um sorriso no rosto e feliz, pela ideia de ter um irmão. Minha mão se repousa sobre seus ombros, mas ela parece me ignorar. Eu a chamo – Mãe. Mãe? Mãe? – E parece que o corpo dela não responde ao meu toque.

Pai? – Pergunto tocando os braços do homem que é meu ídolo. Não me responde.

Nesse momento eles começam a falar sobre como sempre quiseram ter um filho. Uma lágrima escorre pelo rosto de minha mãe enquanto ela fala sobre o quanto tentaram ao longo dos anos. Meu pai, sempre brincalhão, arranca um leve sorriso da mãe falando sobre a importância da prática para a concepção. Uma imagem que eu gostaria de não ter na minha memória agora.

Bom já que me ignoram retiro minha louça e me sento para jogar videogame até a hora da escola, mas não encontro. Ficava ali, debaixo da TV. Será que meus pais estão me castigando por algo? Será que fiz algo errado e não sei?

O tempo lá fora continua igual. Turvo, como se uma onda de calor criasse distorções do mundo lá fora, mas não sinto calor ou frio, não vejo o sol e ainda tudo está escuro. Porém, enquanto percebo isso, vejo meu pai colocando seus óculos escuros, arregaçando a manga e dizendo para minha mãe, que vestia uma curtíssima roupa, falando sobre o calor e o sol de rachar.

Eu perdi o horário? Olho para o relógio da sala, ao lado dos porta-retratos, e ainda são 5h17. Será que acabou a pilha? Chego mais perto para conferir o relógio e me deparo com algo mais assustador. Meus pais podem ter tirado o meu videogame, mas me pergunto: Onde estão as fotos da nossa viagem para a Disney? Onde está a foto do meu campeonato de judô? Onde está a minha foto com a minha namorada? O que fizeram? O que eu fiz para eles serem tão cruéis e tirarem as minhas fotos e só deixar fotos deles?

5h17. Busco por todos os relógios da casa, inclusive em meu celular. 5h17. Em todos os lugares o mesmo horário. Me questiono sobre o tempo e tomo a decisão de ir para a escola. Me arrumo até empolgado para conversar com o garoto novo que chegou. Estranho, pois usava uma capa de chuva amarela dizendo que era sua proteção. Ninguém mais conversou ou deu atenção a ele. Ele me deixou tão intrigado, quando eu entrei no carro dos meus pais e ao invés dele dizer tchau, ele disse bem-vindo! Estou louco para conversar com ele novamente.

Pronto para a escola, com mochila e cadernos em mãos. Abro a porta e me deparo com um céu escuro e nublado. Nuvens escuras que transitam lentamente pelos céus. O caminho de concreto que leva para a rua está preenchido por uma areia negra. A incompreensão toma conta da minha mente. Pareço estar sonhando. Será esse um pesadelo?

Ao pensar uma voz surge pelas minhas costas: Torça para não encontrar nenhum pesadelo no caminho para a escola. – Meu amigo de capa de chuva amarela surge destacando-se totalmente de um cenário escuro e nebuloso. Ele ergue a mão e me oferece um pacote amarelo, de igual tom de sua capa de chuva. – Tome, você vai precisar para se proteger aqui. – Ele diz enquanto caminhamos em direção a escola.

Por que raios eu vou precisar de uma capa de chuva se não está chovendo? – perguntei finalizando com um sorriso no rosto, visto que esse novo amigo não tirava a capa de chuva dele. Sem problemas, cada louco com sua loucura.

Não é da chuva que terá que se proteger. A capa amarela reflete o que mais amedronta pesadelos e corrompidos. – afirmou em uma calma intrigante e com a mão ainda esticada.

Enquanto discutíamos o uso ou não da capa de chuva, passo por um relógio público e, por incrível que pareça, seu marcadores mostravam 5h17, me deixando agoniado. Um pouco ao longe, distraindo minha mente, vejo duas pessoas vestidas de capa de chuva amarela saindo de uma loja de conveniência. Duas meninas dando risadas enquanto caminham em nossa direção. Coloco rapidamente a minha capa. Elas podem gostar do estilo, pensei.

As meninas passam por nós e uma delas olha diretamente nos meus olhos. Um olhar branco reluzente, como se houvesse um brilho branco nas profundezas de sua pupila. Ela sorri e diz – bem-vindo!

Estamos todos juntos agora. – Afirma meu amigo ao lado. – Que bom que colocou a sua capa, assim estará protegido.

Protegido de quem? – Pergunto um pouco furioso.

Ele aponta para um prédio que eu nunca havia visto na cidade. Um prédio alto, que desponta de todos os outros e que seu topo, encoberto pelas nuvens negras, não dava para ver. Um prédio inteiramente preto e sem janelas.

Como esse prédio veio parar aqui? Ontem ele não estava. – Perguntei.

Meu novo amigo sorri. – Não é a torre que surgiu, mas você que não estava aqui para vê-la antes. Agora, em nosso mundo você pode ver.

Nosso mundo? Onde estou? – Pergunto com uma respiração mais acelerada.

Você está em todos os lugares e em lugar nenhum. Você está em um grupo de pessoas que foram retiradas do mundo real. Você está no mundo dos esquecidos.

Meus pais devem estar preocupados, vou voltar para casa. – Falo virando o corpo para as ruas que eu já conhecia e que estavam cobertas por areia negra.

Pais que não sabem que você existe, ou melhor, que existiu? – Ele questiona sem parar o meu corpo.

Saiu correndo em direção a casa. Arranco aquela capa ridícula amarela.

Abro a porta e ao entrar vejo meus pais. Grito – PAI, MÃE! Preciso de um abraço, por favor. – Corro em direção ao meu pai e o abraço. Ele ignora totalmente meu contato. Continua a beber seu café e a comer seu pão com manteiga.

Avanço em minha mãe sentada na bancada e com as palmas das mãos seguro suas bochechas e peço para que olhe para mim. Ela vira o rosto, mas seus olhos não parecem existir. Parados, sem vida.

Para por um instante e observo a cena. Eles estão tomando o mesmo café da manhã de alguns minutos atrás. Eles tinham ido trabalhar. O que fazem aqui?

Ouço um barulho atrás de mim. Sentado na escada com minha capa de chuva amarela na mão, meu amigo sorri de leve e diz – Está tudo bem! Vai ficar tudo bem. – Estende suas mãos para que eu pegue a capa de chuva amarela.

Ao longo do tempo você irá esquecê-los, assim como esqueci minha família. Ao longo do tempo você não perceberá o tempo passar. Ao longo do tempo você irá lembrar como é nunca ter existido. Ao longo do tempo você vai esquecer que é um esquecido.

Fecho meus olhos. Respiro. Triste.

Coloco a capa de chuva amarela, pego minha mochila e da porta eu vejo o relógio do micro-ondas da cozinha. 5h18.


Inspiração do As Chaves da Torre RPG

O RPG As Chaves da Torre possui um cenário muito cativante e cheio de brechas para serem exploradas. O RPG criado por Arthur Azevedo e Ramon Moure, que logo inauguram a Editora Caleidoscópio graças ao sucesso do financiamento coletivo, será um jogo que você guardará em sua memória.

Aqui, para mim, se torna um ponto alto de inspiração e criação. Como acredito que nosso comportamento é moldado por memórias e aspirações, como cada memória é um tijolo na construção do nosso Ser, a alteração e supressão podem causar mudanças profundas em como percebemos e agimos no mundo.

Eu que tenho como prazer criar personagens, analisar suas histórias e definir com profundidade a coerência de seus comportamentos, me sinto rico em criar personagens onde a ficha de personagem tem como essência memórias de uma vida.

Um sistema único

Eu já vi pessoas jogando RPG com cartas, mas para invocar um monstro ou trazer aleatoriedade para encontros aleatórios. Porém, não havia jogado com cartas onde o jogador controla a narrativa inspirado por duas cartas. A carta de tema e a carta de chave. O uso delas, você pode assistir na one-shot que fizemos com o Mestre Arthur.

Por isso, para fazer esse conto, eu me inspirei em uma carta de tema e três cartas de chave, assim como fizemos na one-shot ao vivo. Sendo invisibilidade a carta de tema, que sugere que fomos esquecidos. E as cartas de chave, a gente escolhe uma palavra das seis e escolhi instinto, ilusão e união. Pronto, mais um uso para as cartas, através da condução da escrita de contos.

As Chaves da Torre RPG empolga

A aleatoriedade, a narrativa compartilhada e um universo paralelo, onde posso inventar o que eu quiser que é possível ser aceito ou internado em uma clínica psiquiátrica, me empolga. Não é somente sobre um terror pessoal, pois perder memórias deve ser agoniante. Apesar que você não vai lembrar da memória que esqueceu, não é mesmo? Porém, como jogador vendo a evolução do personagem e pensar na mudança de comportamento e o impacto no cenário, isso me traz muita energia para criar.

Eu, particularmente, apoiei o projeto. Não pela amizade, mas porque eu quero jogar! Assim que tiver o livro e as cartas em mãos, irei sentar com alguns grupos de pessoas para apresentar o jogo, que da maneira elaborada, deixo o RPG do jeitinho que eu gosto.

Apoie o projeto no Catarse até dia 31/10/2022. Clique aqui e acesse o As Chaves da Torre RPG.