Conto – O despertar da chave de dragão
O vento cortante e frio passava por suas pernas, braços e costas. Sua nuca arrepiava! A sensação de solidão nunca fora tão grande. Seus olhos fixos nas chamas que dançavam ao som do vento lembravam os lindos momentos em que família e amigos dançavam sob a luz das nove luas, porém a vontade de dançar e se mexer já não faziam mais sentido. Seu corpo frio estava sendo aquecido pelo calor dessa pequena fogueira, por respirações ritmadas e pelo calor de Wukart, seu fiel e grande companheiro.
Wukart é um lobo de 2m de altura, peludo e forte. Sua pata é capaz de esmagar um simples humano, suas garras afiadas pelas pedras do caminho rasgam os tecidos mais grossos de pele e seus dentes atravessam com facilidade uma armadura de Evernöniak. Criado por Yrion Krutar, desde que esse tinha 3 anos de idade, Wukart estava conectado a ele. Esse era o destino dos dois e de toda a tragetória que os levou até aquele momento onde sua pele e pelos esquentavam Yrion no topo das montanhas congelantes de Mur’h Traba. Dormia alerta protegendo seu humano o máximo que podia do frio e das criaturas da noite. A cada som de pedras deslizando levava sua atenção para o grande buraco que poderia ser a entrada da caverna. A chama balançava e Wukart lembrava dos dias em que comia um grande boi inteirinho, que seu parceiro lhe dava a cada festejo.
Mesmo no pico da madrugada o céu não era escuro! Estrelas brilhavam e a luz das 9 luas refletiam sobre as terras de Yak’Zen Tep. Dos reinados de Karagô aos lagos de Mulisson. Das areias quentes do deserto de Phazaarm até as montanhas congelantes de Mur’h Traba. As 9 luas, dizem os antigos sacerdotes dos vilarejos de Mur’h Traba era as 9 filhas do Deus Kröon, que por suas belezas únicas e incomparáveis foram aos céus e ali se transformaram em luas, onde seriam apreciadas por todos e iluminariam o reinado no descanso de Kröon, o Sol potente de Yak’Zen Tep.
Yrion tinha dificuldades para dormir, era impossível fechar os olhos e não lembrar da grande fumaça ao norte da floresta, na base da montanha. Estava longe. Cavalgando sobre Wukart a uma velocidade nunca alcançada antes, galhos quebravam em seu rosto, em seu peito e em seus braços. Vergões, cortes e sangue já se misturavam com o tecido de suas vestes, mas chegar era mais importante do que pedaços de sua carne. Seus corações batiam no mesmo ritmo, duas máquinas trabalhando em sincronia. Um misto de preocupação, culpa e desespero marcaram a corrida. O vilarejo estava em chamas!
No que deveria ser o portão havia somente brasas. Ao desacelerar e entrar em seu vilarejo cada casa já era restos de madeiras queimadas, caídas e ainda com fumaça. Pedaços de vestes, roupas e armaduras estavam no chão e o cheiro de queimado das peles de seus habitantes eram fortes o suficiente para embrulhar o estomago dos dois. Yrion andava rapidamente em frente, em direção a sua casa, enquanto Wukart acompanhava cada passo, sabendo que aquele era o momento de estar por seu companheiro. Suas patas, por mais delicadas ao pisar no chão, quase sem promover som algum, levantam o pó e as brasas que ainda queimavam. Yrion com seu corpo cortado e em sangue, buscava identificar pessoas, animais ou algo que lhe fosse familiar, mas todos estavam carbonizados.
A dez metros de sua casa seu coração parou. O escudo de seu pai queimado ao chão ao lado de um cadáver já indicava que o velho Malthe’Z Krutar já não estava mais presente no mundo dos vivos. As luas choravam com essa grande perda. Malthe’z Krutar era o grande líder do vilarejo de coletores na base das montanhas de Mur’h Traba e sua missão por tantos anos foi proteger e cuidar do portal de Gryüm, conhecido também como o grande bloqueio. Seu objetivo era deixar seu filho se tornar o líder local e, também, o próximo protetor do portal, porém suas diferenças impediram que Yrion Krutar se vinculasse àquela missão ou talvez àquele momento.
O Portal de Gryüm foi construído na era élfica dos grandes patronos. O portal tinha a função de conectar o território de Yak’Zen Tep com os demais territórios. Uma força mágica descomunal permitia viagens que levariam anos para questão de segundos. Terras foram ligadas pelos grandes portais construídos pelos antigos e já desaparecidos alto-elfos de Evenya, que dizem estar escondida nesse território. A lenda diz que os antigos elfos viajavam e construíam o mundo, davam vida às florestas, alimentavam os animais e levaram as 9 irmãs para os céus. Magos, feiticeiros e druidas, os elfos eram os portadores da luz e usavam seu poder para construir o mundo. Porém, não esperavam que as trevas também teriam poder. Os portais exigiam muita magia para serem abertos, porém exigiam cem vezes mais energia para serem completamente fechados.
Os elfos e as grandes criaturas negras findaram batalhas horrendas. Um queria a sobrevivência e a beleza da natureza e o outro queria a destruição e as cinzas. Batalhas que duraram milênios impactaram todos os tipos de território pelo mundo. Marcas ficaram nas terras, nas águas e no ar. A guerra deixou seus rastros. E durante a grande guerra o portal poderia ser fechado, mas nunca para sempre. Uma magia segura o portal e os grande protetores, como Malhte’z Krutar, guardavam o resto de magia em seu sangue para, em rituais diários, manter a energia segurando a passagem do portal.
Yrion Krutar não queria essa responsabilidade! Dedicar uma vida, sem viajar, sem guerrear, sem caçar e sem colher, pois precisaria ficar disponível para a manutenção do fechamento do portal de Gryüm. Fugir seria a maneira mais fácil, mas alocaria guerreiros para buscá-lo, então seu plano era sair com o consentimento do povo. Implorar para não ser o grande protetor, não teria efeito. Ele teria que fazer o vilarejo deixá-lo ir e o grande tratado de Wilfsorth foi convocado.
Aquele que desafiar e vencer o grande dragão vermelho poderia receber seu poder, fechar o portal para sempre e se libertar de sua história, tendo assim um novo começo e um novo local. O poder infinito do dragão vermelho era cobiça de muitos guerreiros por Yak’Zen Tep, mas nunca ninguém conseguiu se aproximar mais de 3 quilômetros do dragão, ou de seu lar, pois esse sentia de longe o cheiro de batalha e mandava menores criaturas para sua defesa.
Yrion sabia que a sua vida, livre da responsabilidade do portal, deveria se passar pelo dragão vermelho. Sabia que a magia em seu sangue poderia ser útil nessa batalha e sabia que o Anttrin, o velho machado rúnico de seu avô, seria arma que atravessaria as escamas do grande animal mágico. Seu plano seria certeiro! Morte ou liberdade. Não precisaria ficar em maus lençóis com o vilarejo e nem desonraria seu pai. Essa era sua certeza, sua escolha e sua ação.
Ao cavalgar sobre as costas de Wukart, o jovem sentia a magia de seu corpo se multiplicando através da conexão com Anttrin, o machado. Suas tatuagens pareciam ganhar vida e revigoravam seus músculos, pelo menos é isso que sentia. Ao subir em direção ao topo de uma das montanhas de Mur’h Traba, aquela em que o topo liberava fumaça, o sonho de liberdade passava pelos olhos fechados de Yrion, que cavalgava em total confiança em seu lobo. A liberdade era doce, já imagina a sua vida em viagens, conhecendo pessoas e culturas diferentes, longe das certezas de uma vida repetitiva. – Você está pronto para ver uma floresta de verdes plantas e lagos em que é possível ficar nadando o dia todo sem se congelar Wukart? – Ele gritava para o lobo que sentia a energia da liberdade em seu parceiro.
No meio do caminho uma caverna acusava a entrada do lar do grande dragão. Ossos estavam dispostos na entrada mostrando o poder mortal da criatura mágica. A verdade estava próxima, o combate aconteceria naquele instante. O coração dos dois guerreiros saltavam por suas veias enquanto uma onda de medo e euforia circulavam pelos seus corpos. Yrion desceu e resolveu ir ao lado de seu fiel companheiro.
Os dois andavam em passos extremamente silenciosos. Tão silenciosos que era possível escutar o estalar do gelo e da rochas da montanha, tão quietos que o ar de suas narinas poderia ser percebido a metros de distância. Porém, eles sabiam que naquele momento eles poderiam estar mortos, mas não estavam. Um som como uma baforada ilumina o caminho agora escuro na caverna, como se propositalmente mostrando uma direção. O fogo refletindo nas paredes não mostrava nenhuma sombra inesperada, mas talvez assim era feito o abate. – Fique esperto Wukart! Fique com seus sentidos bem atentos. – Cochichou nos ouvidos de seu lobo. Caminharam caverna a dentro.
Mur’h Traba já não parecia mais tão congelante. A cada passo um calor aquecia as paredes da grande caverna. Anttrin tinha suas runas esculpidas com um tímido brilho, que quase podia ser usado como uma fonte de luz para o caminhar, mas as baforadas ritmadas e continuas continuavam mostrando o caminho. Até cessarem.
Um silêncio mortal se iniciou junto com o toque do último pisar dos dois aventureiros do reino de gelo. Segundos que pareceram uma eternidade se passaram até uma voz suave e jovial adentrar os seus ouvidos. – Entrem. Vocês são esperados! – Disse. Yrion procurou a fonte por precaução, mas sabia que estava há alguns metros de distância. Seu machado agora brilhando servia como fonte de luz para andar pelos corredores que se estreitavam.
Caminhando lentamente chegam ao que parece um salão dourado. Um salão gigantesco que em uma rajada de fogo ficou iluminado. O fogo que se originou do centro deste salão rodou por todas as paredes, ascendendo diversas tochas espalhadas pelo chão, pelas paredes e pela escada. Ouro para todos os lados. Um ouro que se misturava com um chão de mármore negro, com ornamentos em pérolas e com paredes da própria montanha esculpida. Estátuas de dragões e outros seres que Yrion não reconhecia criavam um gigantesco círculo onde ao centro uma única cadeira alta, de pérola e ouro, estava disposta, e ao seu entorno um grande dragão vermelho repousava quietamente após ascender todas as tochas com suas labaredas.
No centro, sentada sobre uma cadeira, uma presença ali estava. Com um gesto de suas mãos chamava Yrion a descer com Wukart. Não era assim que ele havia imaginado esse combate, não era assim que imaginava morrer. – Quem é essa pessoa? – Perguntou ao amigo peludo. Descia e a cada degrau se surpreendia com o gélido toque das superfícies peroladas, com o calor ao redor de seu corpo que lembravam os dias de festa em saudação às 9 filhas. Um local tão impecavelmente organizado, liso e místico.
Suas tatuagens agora começavam a brilhar em um pequeno tom azul, algo que nunca havia acontecido antes. Assim como os olhos de seu fiel amigo de 4 patas, que liberavam pequenas chamas luminescentes azuis. – O que está acontecendo? O que está acontecendo? – Se perguntava a cada degrau largo que descia e já podendo perceber que o dragão, de olhos fechados, tinha uma boca que poderia engoli-los algumas dezenas de vezes. Gigante e imponente como as histórias. Olhou para seu machado e dava risada de si, pensando se conseguiria se quer chegar a encostar na criatura em combate.
Da cadeira central, que mais parecia um trono, a pessoa de robe azul royal com detalhes dourados levanta e avança em direção a Yrion. – Seja bem-vindo jovem mestre! Eu estava a te esperar. – A voz suave dizia para Yrion enquanto lentamente tirava o capuz. Por baixo, uma jovem ruiva de orelhas pontudas arrumava seu cabelo e olhava com seus verdes olhos para o jovem guerreiro. Com sua mão esquerda tocou o focinho de Wukart que sentiu uma rajada de bem-estar e prazer e lentamente foi deitando-se no liso e gélido chão da caverna. Estava calmo como o dragão.
– Yrion. Sua presença engrandece minha felicidade! Estava ansiosa para saber quando o próximo Krutar adentraria sua própria caverna! – Ela dizia em um tom suave e sorridente para Yrion.
– Alguém já veio aqui? Minha caverna? Quem é você? – Perguntas voavam pela voz rouca e insegura do jovem.
– Sua caverna jovem príncipe! Eu estava a te esperar. São mais de 700 anos sentada com He’rKrat para lutar ao seu lado.
– Co-co-como assim? – gaguejava o jovem.
– Sua família, não é só protetora do portal de Gryüm. Vocês são a chave que abre e fecha. Vocês são os decisores da harmonia de Yak’Zen Tep. Vocês são os protetores dessa dimensão.
Yrion não acreditava no que estava ouvindo. Olhava para a jovem e bela moça, se perdendo profundamente entre seus olhos, sua beleza e a história bizarra que ela lhe contava agora. Sua mente estava derretendo as memórias das histórias dos antigos anciões, enquanto questionava a veracidade de tudo aquilo. Chegou a pensar que estava morto e isso era uma pegadinha da outra vida que os anciões tanto contavam nas rodas da aldeia.
– Yrion. Sente-se no seu trono que irei te contar. – Falava a jovem empurrando Yrion para sentar no seu trono enquanto tirava seu manto azul royal, revelando um corpo esculpido por treinamentos intensos de combate, vestes de couro e pequenos pedaços de armadura de Evernöniak que protegiam seu tórax. Uma jovem perfeita por mais de 700 anos.
Ao sentar o último dos Krutar fecha seus olhos sem controle e observa rapidamente uma série de imagens passando em sua mente. Flashes de um mundo verde e feliz. Figuras de pessoas sorrindo e contentes. Imagens de colheitas fartas e caçadas emocionantes. Tudo era lindo até que um homem com tatuagens como as suas evoca um poder tão poderoso entre duas árvores que ele jamais poderia esquecer. Gryüm nascia das raízes de árvores comuns e abria um portal para criaturas horrendas atravessarem. Algumas a pé, outras em montarias e outras voavam. Um som aterrorizador saia de dentro do portal e Yrion assistia sem controle as pragas que agora dominavam Yak’Zen Tep. Assistiu o reinado sombrio que agora doía em uma parte de seu braço. Uma mancha na tatuagem que havia nele, em seu pai e em seu avô. A mancha na tatuagem ardia.
A escuridão se alastrou por toda a terra. Uma imagem de jovens guerreiros surge em batalhas contra as criaturas das sombras e três grandes dragões surgem por de trás das montanhas e voando em direção às cidades de puro horror. Flashes de gritos de prazer e glória das criaturas se misturavam com os gritos de vitória dos guerreiros, que se somavam ao som dos dragões comemorando sob o Kröon. O rapaz observa as diversas tentativas de fechar o portal por completo. Assiste seu avô e depois seu pai fazendo os rituais diários para manter Gryüm fechado. Seus olhos se abrem e encontram a centímetros de distância o olhar sorridente da jovem elfa.
– Illyana Vatyn ao seu dispor! – E se curva em reverência ao jovem no grande trono, de forma leve e enérgica. – Esse era o castelo da sua família antes do portal, antes de Hughtar abrir o espaço dimensional das criaturas, antes de seu povo esquecer quem realmente é.
O jovem deslumbrado com a beleza da jovem centenária e impactado com os flashes imprimidos em sua memória, agora respira e tenta assimilar.
Um estrondo na caverna estremece o teto e pela primeira vez parece que aquele lindo chão de mármore recebe um grão de poeira. O dragão levanta sua cabeça e mostra toda sua imponência e Wukart desperta de seu transe. Os olhos do dragão fitam o jovem Yrion. Olhos amarelo alaranjados que pareciam chamas em um orbe se comunicavam com o novo príncipe no trono. Ele não poderia entender, ainda.
– Não há tempo à perder. Seu pai não conseguirá segurar o portal por mais um dia. Você precisa fechá-lo! Você precisa fechar Gryüm de uma vez por todas! – Sorridente e agitada a elfa falava.
– Ok. Como faço isso? – Perguntou curioso.
– O dragão precisa entrar em você! Você precisa receber a magia dos ancestrais. Tudo que eles puderem te dar e você aguentar!
– Claro! – Disse de forma incerta, revivendo as memórias recém liberadas em sua cabeça.
O dragão levantou-se e dezenas de metros mostraram sua imponência. O lobo Wurkat foi ao lado de Yrion, que colocou sua mão esquerda sobre seus pelos e os acariciou. O jovem não sabia se dava segurança para o lobo ou para si mesmo.
– O que eu tenho que fazer? – Perguntou para Illyana.
– Não há mais tempo. Já começou! Deixe que o dragão faça seu trabalho. – Disse enquanto corria em direção as escadas.
O dragão com o rosto em sua frente abriu a boca, ascendeu suas chamas e o primeiro toque de calor o tocou.
Um apagão em sua mente! Ao abrir os olhos estava em uma clareira em meio a floresta. Não havia vestígios de fogueira ou de alguém ter estado ali. Ele conhecia o local, já havia passado por lá anteriormente. Já havia usado essa clareira para descansar em dias de caça. Porém, algo chamava a sua atenção uma fumaça preta ao norte, ao pé de uma das montanhas de Mur’h Traba. Yrion subiu rapidamente sobre Wurkat que partiu em disparada pela floresta. Seu corpo estava diferente, assim como de Wurkat. Forte, rápido e a tatuagem completa! Sua tatuagem que outrora brilhava azul, agora ascendia em roxo avermelhado. Em sua tatuagem havia runas desenhadas, que lembravam o machado de seu avô.
Wurkat voava pelas floresta enquanto a mente de Yrion tinha uma só certeza. O portal fora aberto novamente.
Esse é um conto que escrevi um dia quando o mestre Vitão em disse para escrever o livro que eu gostaria de ler. Me desafiei a escrever algumas palavras e ver onde eu conseguia chegar.
Deixe comentários para eu saber se te levei para uma viagem bacana nesse universo sentido e criado num momento de força, confiança e coragem.