Contos de Nindäle – A Canção da Neblina
Eu segurava um crânio em minhas mãos, olhava uma senhora chorando e não sabia como isso tinha acontecido. Como cheguei a essa situação? Ou melhor, aonde eu tinha chegado?
A Canção da Neblina
Havia um tempo em que as montanhas congeladas, o frio ardente e o constante brilho branco do sol refletindo na neve não me incomodavam. Na verdade… eles me inspiravam.
Enquanto meu pai ficava ao lado de um forno e batia seu martelo contra os mais variados tipos de metais para criar as mais diversas ferramentas, armas e armaduras. Eu observava o mundo lá fora. O constante branco não mudou desde o dia em que nasci. Aliás, em nossa tribo nada mudou desde o dia em que nasci. As mesmas pessoas fazem a mesma coisa todos os dias, são as mesmas piadas na taverna e as mesmas pessoas que se cumprimentam no caminhar entre as casas. A mesma rotina, a mesma escavação e até mesmo os mercadores, que aparecem de tempos em tempos para pegar nosso rico minério, são os mesmos.
Mesmice.
Depois de tanto tempo, ouso dizer que não estamos em um lugar maravilhoso e seguro. Para mim, essa falta de vida é um castigo da Energia-Mãe por algo que nós ou nossos ancestrais fizemos. Agora temos que ficar aqui lutando dia após dia para comer e não morrermos congelados.
— Custa apenas um mercador diferente vir para essa cidade? — A jovem aprendiz gritou enquanto observava seu pai lutava contra diferentes tipos de metais aquecidos usando apenas um martelo e tentando deixá-los uniformes.
O ferreiro olhou a jovem de canto de olho e retomou o seu trabalho.
— Custa pai? Custa? A gente tem que ficar preso neste lugar? Isso não é vida, eu dúvido que as outras tribos vivam assim também. — Falou em alto tom, encarando o homem que suava ao lado do forno de fogo infinito. — Eu até acho que deve ter lugares que sejam mais quentes por aí.
— Eu te entendo minha filha. — Falou o homem pegando uma blusa e chegando mais próximo da menina. — Nós vivemos uma vida limitada por aqui, não é mesmo? Fazemos isso há muitos e muitos anos. Dizem que nossa tribo foi uma das primeiras que surgiram quase junto aos Deuses-Dragões. Porém, ninguém nunca saiu daqui. — Ele pigarreou, esperou alguns segundos. — Vivo, pelo menos.
— Você está me dizendo que não podemos sair daqui? Que vou viver minha vida igual a você? Igual a todas as outras pessoas?
— Não filha, você irá viver do jeito que você desejar. Venha, quero lhe mostrar uma coisa. — Ele a convidou para subir algumas escadas de pedra e lã mineral e a conduziu para seu quarto.
A jovem entrou no quarto de seu pai e observou a solidão densa que pairava. Não havia decoração alguma. Apenas as rochas, a cama e dois baús. Seu pai estava de frente a um dele, o baú do lado oposto em que dormia. O clima agora ficara mais denso do que antes.
Com as mãos no peito, ela se aproxima do pai para verificar o que ele estava fazendo. Ela nunca viu ele mexer no baú de sua mãe.
— Sente aqui Sephcia. — Apontou o ferreiro para a cama. — Quero lhe mostrar algo.
Sepchia sentou-se confortavelmente esperando a próxima ordem de seu pai que segurava algo enrolado em um pedaço de pano.
Começando a desenrolar lentamente o pano, uma lágrima cai de seu rosto e a jovem também limpa seus olhos. O pedaço de pano revela uma lâmina branca com detalhes dourados, aparentemente bem afiada e com jóias azuis incrustadas em seu corpo.
Ela olha para seu pai esperando uma explicação.
— Sepchia, eu entendo você. Entendo sua vontade de sair e explorar o mundo. Porém, quero te dizer que você não está errada. — Ele respira profundamente. — Há um mundo maior por aí a fora. Moramos no país de Valadar, mas aparentemente existem muitos outros países. Eu mesmo não sei quais ou o que são. Apenas escuto dos mercadores que vêm buscar a lã mineral e minhas ferramentas.
— Mas, como você sabe pai, porque nunca me contou?
— Sua mãe. Sua mãe… — Ele sentia o nó na garganta é a dúvida. Seria este o momento certo? Será que deveria contar? Rargon sabia que aquele momento seria definitivo para perder a sua filha.
— O que tem a mamãe? — Secava suas lágrimas enquanto se sentia curiosa pelo que seu pai estava tentando lhe contar. — Conta para mim.
— Você já não é mais uma criança Sepchia. Você já é quase uma mulher e você poderá tomar suas próprias decisões.
O pai olhava para a adaga e olhava para sua filha. Ele sabia que em breve toda sua pureza poderia ser substituída por ira, raiva, tristeza ou, até mesmo, a insanidade.
— Sepchia, sua mãe não era uma Thorthehor. Ela não era uma membro da tribo quando a conheci. — Suas mãos tremiam enquanto segurava a adaga e esticava lentamente os braços para sua filha, entregando-lhe em mãos a adaga. — Sepchia, sua mãe veio através da névoa. Ela estava cansada naquele dia e conseguiu entrar na ferraria. Encontrei-a deitada ao lado do forno, azul de frio, tremendo e com fome. Ela balbuciava coisas estranhas, palavras que eu não entendia. Porém, ela me viu como um amigo e deixou-me cuidar dela.
— Como assim pai? Ela veio de outro lugar? Igual aos mercadores? Ela era uma mercadora?
— Sim e não. Ela veio de outros lugares, mas não era uma mercadora. — Respirou fundo. — Sua mãe era uma guerreira de uma região que se chama Hassine. Ela era uma exploradora e sua função era rastrear os perigos de uma outra região que se chama Fardan. — Ele coçava a cabeça e mexia os olhos para ter certeza dos nomes que falava.
— O que são esses nomes pai? O que é Ranzini e Fordein? — Estava mais curiosa do que saudosista neste momento.
— HA-SSI-NE e FAR-DAN, querida. — Ele a corrijiu. — Acho que este eram os nomes, posso estar errado. Porém, sua mãe dizia que eram dois países além do nosso. Além das montanhas nevadas de Valadar. Um deles era quente e tinha até dinossauros, mas não me venha perguntar o que é, que nunca entendi. O outro, eram terras perigosas e que abalam inclusive Valadar.
— Então existem mais dois países lá fora? É isso?
— Aparentemente são mais do que isso. Esses foram os que ela me contou, minha filha.
— Pai, eu preciso saber o que há lá fora. — Falou segurando com firmeza a adaga.
— Esta adaga pertencia a sua mãe, filha. Foi a única coisa que guardamos de seu equipamento do dia em que chegou. — Falou com pesar. — O resto eu derreti e a cobri com nossas cores e vestes. Inclusive troquei as gemas de sua adaga. Eram verdes e coloquei azuis.
Um silêncio pairou no ar por alguns segundos, talvez minutos. Sepchia olhava para a adaga de sua mãe, enquanto Rargon olhava para sua filha.
— Filha. — Rargon chamou. — Eu havia combinado com sua mãe sobre jamais falarmos do mundo lá fora. Assim, ela poderia ficar aqui protegida de Hassine e Fardan. Por mim e por todos da aldeia. — Seu tom se tornou mais confiante. — Deixarei você agora, para que tome seu tempo.
Rargon saiu e Sepchia observou a espada por mais alguns minutos.
Com a adaga em mãos ela desceu. Na ferraria, seu pai possuía um boneco de madeira e rocha, que usava para testar suas espadas e lanças. Sepchia empunhou a adaga e apunhalou o boneco com precisão e força.
— Eu sei o que devo fazer pai. Eu sei o que devo fazer.
Rargon, de costas para a filha, escondeu seu choro e suas lágrimas.
— Vamos começar os preparativos Sepchia. Vamos começar os preparativos. — Disse tentando esconder a pressão que esmagava seu peito, arranhava sua garganta e enfraquecia seu corpo. — Só me dê um minuto, minha cara.
Sepchia assentiu e subiu para seu quarto.
A porta estava aberta, o vento estava fraco e a neve caía levemente sobre a casa de pedra. Sepchia tinha um olhar determinado. Seu pai lhe trazia uma armadura branca e azul, feita de metal e lã mineral, que a manteria aquecida e protegida durante a jornada.
Ele lhe entregou também um arco azul, liso e com um único ornamento, o símbolo da sua tribo Thorthehor. Rargon sentia o peso da armadura mais pesada que já havia construído. Não pelo material que usou, mas porque sabia que este momento seria a última vez que veria Sepchia.
— Lembre-se de tudo o que falamos em sua preparação querida filha. — Disse Rargon ao terminar de equipar sua filha com a armadura, o elmo, suas armas e uma mochila de couro com rações, um machado de gelo e alguns suprimentos. — Lembre-se de confiar nos seus instintos e não na sua mente. Nossa mente prega peças, ela nos engana. E na névoa essas vozes se tornam muito mais fortes. Confie nos seus instintos minha filha.
Sepchia assentiu com um leve sorriso que deixaria qualquer pai orgulhoso, mas que também trazia a certeza de que aquele momento definia uma viagem sem retorno ao encontro de tudo o que existe no mundo e nenhum de Thorthehor já viu.
Sua caminhada leve e dócil se perdeu na espessa névoa que se formava há algumas dezenas de metros da casa.
A última imagem de sua filha era vestindo uma armadura que daria inveja a qualquer guerreiro nobre de Valadar e que sumia num dos maiores perigos do país.
A neblina era intensa e após muitos quilômetros de caminhada lutando contra a neve fofa, as rochas deslizantes e a falta de visão. Chegou o momento em que descansar se tornou sua maior necessidade.
Apalpando sempre as rochas e tentando encontrar um lugar para se abrigar, suas mãos passavam por pequenos espaços que caberiam uma pessoa menor do que ela, mas ela ainda não.
Sepchia tinha a exaustão como sua companheira logo no primeiro dia. “Queimei a largada” disse para si mesma. Porém, a coragem e a determinação também estavam ao seu lado.
Enquanto procurava um abrigo a luta contra o frio e os ventos que cantarolavam uma bela sinfonia entre seu elmo e seu capuz, Sepchia sentiu pela primeira vez a dor de sua partida e a insegurança de não ter para onde voltar. Pelo menos, não agora.
Sepchia lembrava que sua mãe era uma exploradora e que ela havia passado por esta intensa neblina para chegar ao seu pai e se tornar a sua mãe. Agora era a vez dela de ir para o mundo e honrar sua mãe. Pressionava fortemente o punhal de sua adaga.
O frio e o uivo dos ventos era algo diferente do que já havia sentido em Thorthehor. Lá as casas ficavam mais unidas quebrando a força do vento, da nevasca e da neblina. Porém, sozinha lutava contra uma cegueira branca que impedia seu caminhar e estava testando sua força de vontade.
— Um buraco. Isso! Aqui! — Gritou feliz ao encontrar um pequeno abrigo que conseguia entrar e havia espaço para se proteger do frio.
Deitou o seu corpo sobre sua mochila e nem mexeu em sua armadura. Estava cansada. Queria apenas tirar um cochilo antes de comer ou beber alguma coisa.
Por lá dormiu. Entre os ventos uivantes e a neblina que nunca diminuía.
Acordou, sem saber o tempo ou o quanto dormiu. O tempo lá fora não possibilitava a distinção entre dia e noite. Branco era tudo o que via. Branco era tudo o que sentia.
Pegou um pedaço de sua ração e mordeu. Mastigou aquele pedaço duro de pão e carne que seu pai havia preparado. Ela tinha contado quantos dias ela conseguiria caminhar, sabendo que deveria ser breve para conseguir sair da neblina.
Levantou-se, voltou a caminhar.
— Ahhh… parece que quando a gente para, quando a gente volta fica mais frio ainda. — murmurou para si mesma. Enquanto o vento tocava a canção da solidão por seus ouvidos.
E assim ela foi. Caminhando dia após dia, descendo e subindo as montanhas de Valadar, na busca de outras pessoas, outros lugares e outras histórias.
Alguns dias passaram e a exaustão agora se tornou parte de si. Não sabia se tremia de frio ou de cansaço. Havia apenas uma voz, uma pequena voz familiar, ecoando em sua mente. “Desista” essa voz dizia. “Volte” ela repetia. Porém, a Sepchia reconhecia seus próprios pensamentos e confrontava com a inspiração de sua falecida mãe.
O caminhar se tornou um arrastar. As mãos mal conseguiam tocar as rochas em busca de um lugar para se esconder. Seus pés já não tinham força para vencer o peso da neve.
Encostou e percebeu o vazio de sua mochila. Há algumas horas ela teria comido sua última ração e bebido seu último gole de água.
— Energia-Mãe, me mostre o caminho. — De olhos fechados ela sussurava. — Mãe, mãe… me mostre como sair dessa neblina. Estou exausta.
Seus olhos foram se fechando. Seu corpo deslizou pela pedra levando seu corpo a rolar pela neve em um pequeno desfiladeiro.
Sepchia abriu seus olhos, sem força. “Mamãe enfrentou tudo isso?” Ela se perguntava. Com as mãos em uma rocha, ela fez força para se levantar. Porém, ao apoiar seu corpo a rocha estraçalhou em pedaços. Olhou para os lados e viu várias rochas do mesmo tamanho.
Ela olhou mais de perto e viu. As rochas não eram apenas rochas. Elas eram crânios jogados no chão.
— Onde estou? Que merda! Preciso sair daqui. — Seus olhos se abriram e seu corpo se energizou com a sensação de perigo iminente. Com tantos crânios e ossos jogados aqui, talvez seja o lar de algum tipo de fera, de monstro.
A jovem analisou sua queda e correu para o lado oposto, passando por várias caveiras, esqueletos e ossaturas. “Humanos, Draconatos, Ownlins e até Goliath, que tipo de criatura consegue derrotar até os mais resistentes?” se perguntou enquanto acelerava seus passos ao máximo que podia.
Porém, em um crânio tropeçou e caiu no chão. Sua adaga caiu em meio a neve junto com algumas flechas de seu arco.
— Não, não, mil vezes não. Onde está? — Procurava rapidamente a adaga enquanto lutava para o vento não cobrir e apagar seus rastros.
O som do vento e a neblina se intensificaram. Sepchia precisava comer e beber algo. Na sua busca pela adaga encontrou um crânio diferente dos demais. Um crânio mais fino e com um bico que parecia de griffo. Ela o pegou e o levou para dentro de uma pequena caverna, junto com a adaga que agora embainhou novamente.
Ela olhava para a caveira, com fome, frio e sede. “Onde você está Energia-Mãe? Por quê não me tira daqui? Eu pedi o caminho e você me trouxe para um cemitério dessas coisas aqui? Nem sei o que pode estar ao meu lado.”
Uma voz feminina surge em meio ao vento. “Sepchia, Sepchia minha filha. Desista…”
Olhou para os lados e nada viu. Apenas a caveira em sua mão, distinta e única, segundo ela. Os ventos continuavam uivando, mesmo dentro da pequeno espaço que se encontrava.
— Mãe. Por favor, onde quer que esteja. Me ajude. — Falou abraçando o crânio em seu peito. — Pai, por que me deixou vir? Por que? Por que?
Adormeceu.
A nevasca intensificou-se aumentando a branquitude da neblina, o frio mais congelante e uivos mais profundos do vento. Sepchia já não tinha mais forças para sair dali. Parada, congelada pela sua falta de ação e não pelo gelo. Sua armadura era realmente única.
Porém, ao abrir os olhos, Sepchia viu as lágrimas de uma mulher ajoelhada em sua frente, vestindo apenas um vestido branco perolado. Suas mãos cobriam seu rosto com lágrimas congeladas entre os dedos.
— Senhora? Você está bem? — A jovem perguntou segurando seus pertences e a caveira em seu braço. — A senhora não está com frio?
Nenhuma resposta surgiu. A mulher continuava chorando baixada, mas não tremia e nem nada.
— Desculpa filha. — Um sussuro dos ventos trouxe o som de uma voz feminina. — Desculpa. Desculpa. Eu devia ter ficado com vocês. Devia ter te ensinado como sobreviver, como sair de Thorthehor.
— Mãe? Vo-você está aqui mesmo? V-vo-você não morreu?
— Não filha, estou aqui. Estou aqui para cuidar de você agora. — Seu choro se amenizava e ganhava confiança para revelar seu rosto.
A senhora a sua frente revela uma feição próxima a de sua mãe. Uma mulher alta, corpo forte, uma pele morena, olhos verdes, um rosto fino, mas com um cabelo esbranquiçado. Algo que o tempo faz com os mais velhos.
— Filha, agora está tudo bem. Eu vim te ajudar. Eu vou ficar com você!
— Mãe, eu pensei que a senhora estava morta. — Sepchia chorou. Chorou em prantos agarrada a uma caveira e observando a senhora a sua frente que agora revelava ser tão próxima e tão íntima.
— Venha filha. Deite-se em meu colo. Agora irei cuidar de você, está tudo bem.
— Mas e este vestido mãe? Não está com frio? Papai falou que você sentia muito frio. — Falou quase sem forças, deitando no colo de sua mãe, abraçada com o crânio que havia encontrado.
— Agora está tudo bem Sepchia. Agora está tudo bem, mamãe vai cuidar de você! — A voz falou baixinho, sumindo entre o som do vento.
Sepchia encolheu-se, cobriu-se com a mochila, com seu braço esquerdo abraçou o crânio que havia encontrado, com seu braço direito segurou o pomo da adaga de sua mãe e ajustou, pela última vez, a cabeça na rocha de uma das milhares de cavernas de Valadar.
Sobre Valadar e Nindäle
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