Crunch, fluff e granularidade – (Não) Narre mais D&D!
Sim, o título é polêmico! Propositalmente, mas por uma boa causa. Fique tranquilo, pois não vou tentar te convencer a deixar de mestrar D&D. Na verdade quero falar dos conceitos crunch, fluff e granularidade de game design de RPG para te ajudar a se conhecer melhor como mestre e achar os sistemas ideais para você narrar. Até pode ser o D&D, mas também pode não ser – e está tudo bem nisso!
A origem da polêmica revelação
Minha esposa eu jogamos bastante RPG juntos. No momento, estamos em duas mesas de Tormenta 20, somos ambos jogadores em uma e eu sou o mestre na outra. Também estamos jogando juntos uma mesa de D&D e ela já jogou em algumas comigo narrando. Ela ama D&D, tem adorado Tormenta 20 e detesta qualquer coisa do gênero de terror, o que inclui Cultos Inomináveis, cenário em que narrei uma one shot em uma stream aqui da Nuckturp.
Mesmo não gostando, ela assistiu a minha stream e ao terminar me disse que mestrava muito melhor Cultos Inomináveis do que D&D ou Tormenta. Eu já tinha sentido isso enquanto narrava, mas ela afirmar isso não me deixava ter dúvidas.

Então decidi assistir a minha one shot e pensar no porque de ela ter faldo aquilo. Foi aí que entendi: na stream eu estava pouco preocupado com o sistema, com detalhes mecânicos, com regras, e estava muito focado na história que eu estava narrando. E não foi a toa.
Hitos (sistema de Cultos Inomináveis) tem bem menos detalhes para gerenciar do que Tormenta e D&D ao mesmo tempo em que tem muito mais liberdade narrativa em suas regras. Sem precisar me preocupar tanto com questões de regras, pude focar mais naquilo que eu acho mais importante ao mestrar: a história.
Constatando isso, me lembrei de alguns conceitos de game design de RPG: crunch, fluff e granularidade. Vou explica-los e depois dizer porque eles me ajudaram a chegar na minha conclusão.
Crunch e Fluff, o yin-yang de um sistema de RPG

Crunch é a parte do sistema que se refere às suas regras para conduzir jogo. Quanto mais situações ele tentar criar reflexos ou soluções mecânicas, mais “crunchy” ele é.
Exemplos de sistemas crunchy: D&D (Galápagos), Pathfinder (New Order), Tormenta (Jambô), The Dark Eye (RetroPunk), GURPS (fora de catálogo, mas foi trazido anos atrás pela Devir) e Shadowrun (New Order).
Já o Fluff é aquilo que o sistema prevê ser descrito, mas que não tem impacto nas regras. É o cenário, o pano de fundo, aquilo que ilustra as regras sem as afetar ou usar. Se um sistema está mais preocupado em criar uma ambientação, determinado tom de jogo ou garantir mais interações narrativas, ele é mais “fluffy”.
Exemplos de sistemas fluffy: Hitos (Buró), Fiasco (RetroPunk), FATE (Meeple BR) e Powered by the Apocalypse (Secular Games) e seus derivados, como Dungeon World (Secular Games) e Kult: Divindade Perdida (Buró).
Todo sistema de RPG tem sua parcela de crunch e de fluff. São exatamente como o yin-yang, duas forças fundamentais ao mesmo tempo opostas e complementares. Porém normalmente os sistemas costumam dar mais relevância para uma coisa do que para outra. Alguns favorecem mais a narração, mas eles se utilizam de determinadas regras que incentivam isso (fluff > crunch, fluffy). Outros te fazem calcular diversas variáveis para saber se uma ação deu certo ou não, só que esse cálculo foi feito porque aquela ação foi descrita de determinada forma (crunch > fluff, crunchy).
Granularidade: o segredo está nos detalhes!
Granularidade refere-se ao quanto à ficha do personagem o descreve. Quanto mais características forem necessárias ou possíveis de inserir para construir um personagem, mais granular é o sistema. GURPS é o maior exemplo de um sistema altamente granular que eu consigo me lembrar.
Apesar de raramente eu ver alguém analisar dessa forma, gosto de entender a granularidade de um sistema observando também o quão grande, e por consequência precisa, é sua escala métrica. Por exemplo, o BRP, sistema base de Chamado de Cthulhu (New Order), sob esse ponto de vista, é bem granular. Nele, as perícias dos personagens são medidas de 01 a 99 e os atributos têm descrições variando entre zero e mais de 200.
Outra coisa que preciso chamar a atenção é que sistemas crunchy não são necessariamente muito granulares, bem como ser possível ter apenas parte do sistema granular. Logo, conseguimos achar sistemas fluffy com alguma parte bem granular. É o caso do Hitos. Considero Hitos um sistema fluffy porque a criação de personagens é extremamente livre por causa da mecânica de aspectos e é possível o jogador inserir ou alterar elementos na narração do mestre. A meu ver, ele claramente privilegia a narrativa à mecânica. Contudo quando se trata de medir a saúde e a sanidade dos personagens, ele tem uma mecânica bem granular – três níveis diferentes de resistência física e de estabilidade mental, dois tipos de pontos diferentes para calcula-las, consequências permanentes e temporárias, dentre outras coisas.
A Complexidade vem de todos os lados

Veja, a complexidade de um sistema de RPG não vem necessariamente de ele ser crunchy ou bastante granular. Jogos OSR, que simulam o estilo de jogo das primeiras edições de D&D, são crunchy com seus bônus “+ algum número” para todos os lados e páginas e páginas de tabelas em seus manuais. Porém a jogabilidade deles é bem simples. O próprio Chamado de Cthulhu que citei acima como exemplo de alta granularidade é extremamente intuitivo de ser jogado.
Às vezes é o fluff que deixa a coisa complexa. Pegue o exemplo de Mago, pode ser tanto o Ascensão quanto o Despertar (ambos fora de catálogo, mas publicados anos atrás pela Devir). Ainda vejo eles como sistemas crunchy, mas de complexidade mecânica baixa, só que em termos de história… são de uma complexidade enorme. Para você ter uma noção do que digo, o livro da edição de 20 anos de Mago: A Ascensão tem 11 páginas de uma espécie de “dicionário de termos”, todos ligados ao cenário, não às regras.
E por que eu falei de tudo isso?
Bem, se você ainda se lembra do porque de eu ter começado a falar tudo isso, provavelmente já deve ter percebido onde eu quero chegar. Revendo esses conceitos de game design e pensando nos sistemas de RPG que eu estava narrando, percebi que sou um mestre melhor de sistemas fluffy do que crunchy e que alta granularidade é algo que me atrapalha, muito.
Quando analiso minhas sessões de D&D e Tormenta, com frequência vejo que esqueci algum detalhe mecânico ou item ou habilidade que eu deveria ter usado, mas não usei.
Quando leio um cenário ou sistema de RPG, o que mais me encanta é a complexidade de elementos narrativos que ele traz. Quanto mais, melhor. Porém se as regras forem muito pesadas, a mágica desaparece. Não por acaso que quando voltei a jogar RPG há 10 anos atrás procurei por Mago: o Despertar (cenário e sistema, na minha opinião, melhores que Ascensão – desculpe, não posso perder oportunidades de falar isso).
Quando vejo uma ficha de GURPS sinto agonia.
Moral da história
Sabe a máxima socrática “Conheça-te a ti mesmo”? Pois é, faça isso.
Por muito tempo eu não gostei de D&D. Achava um sistema truncado, abarrotado de perícias, dependente de listas e de testes pra tudo e que servia somente para narrar combates intermináveis. Foi então que eu joguei a 5ª edição dele e adorei. Ela é a mais simples e fluída das edições de D&D, a menos crunchy. Ainda assim, quando comparada com um sistema fluffy, fica para trás, prova disso foi me ver narrar Cultos Inomináveis.
Pense bem sobre o que te agrada mais no RPG e só depois disso procure sistemas e cenários para narrar que reflitam esses gostos. E para achar aqueles que fazem isso, pense nos conceitos que trabalhamos aqui. Se ainda assim quiser muito narrar algum sistema que não se encaixa com seu perfil, lembre-se que todo sistema de RPG tem uma parcela de crunch e de fluff. Portanto você pode pesar mais uma parte do que outra. Lembre-se, também, que por mais que um sistema seja extremamente granular, você ainda pode modular isso com a sua narrativa (e esse é o segredo do bom GURPS).