Cultos Inomináveis é um RPG lovecraftiano publicado pela editora espanhola Nosolorol e que se utiliza do sistema Hitos, da mesma editora. Ele foi trazido para o Brasil pela editora Buró, com absolutamente todos os seus livros publicados até agora na Espanha, depois de um financiamento coletivo muito bem sucedido que arrecadou mais de R$ 120 mil!

Quem joga RPGs de terror provavelmente já jogou Chamado de Cthulhu (Call of Cthulhu, ou CoC), o sistema lovecraftiano mais popular no momento. Acontece que eu não gosto dele… CoC usa habilidades pré-definidas jogadas em percentual, se preocupa em ambientar aventuras na década de 1920 e os personagens não são manipuladores dos Mitos. Nada disso me atrai quando penso no potencial que o RPG e o horror cósmico de Lovecraft podem alcançar juntos. É mesmo uma questão de gosto pessoal, pois o sistema é ótimo, funcional e imersivo.

Então, ouvi falar de Cultos Inomináveis, um sistema com liberdade total para criar habilidades não percentuais, especialmente planejado para jogar nos dias de hoje e, o mais importante, com personagens cultistas dos Mitos. Era o que eu sempre quis, o que eu sonhava (ou deveria dizer… “pesadelava”?)!

Vou, então, apresentar para vocês o sistema e o cenário dele, que me apaixonaram, e ver se os convenço a criarem comigo personagens que caçam lendas urbanas de estatuetas e celulares amaldiçoados para se aproveitar de seus poderes e que se jogam nos fóruns mais obscuros da internet a procura de páginas do Necronomicon que, com sorte, sejam reais.

O sistema: simples e ilimitado

Criação de personagens

Os personagens têm 20 pontos para distribuir entre quatro características: Força, Reflexos, Vontade e Intelecto, e 40 pontos para distribuir entre habilidades: Forma Física, Combate, Interação, Subterfúgio, Percepção, Cultura, Profissão, Ocultismo e Habilidades Arcanas. Ambas variam de 1 a 10, sendo 3 o padrão médio.

Repare que todas são bem abrangentes – ao menos até que o jogador defina essas características e habilidades com um aspecto. Basicamente, ele inventa para as características e habilidades a forma pela qual seu personagem as utiliza principalmente, dando uma razão para aquele número. Vou exemplificar com dois personagens com exatamente a mesma distribuição de pontos:

Força: 5 – trabalhador braçal	Força: 5 – turista de academia
Reflexos: 3 – parrudo	Reflexos: 3 – atento
Vontade: 7 – cabeça dura	Vontade: 7 – empenhado
Intelecto: 5 – sabedoria da vida	Intelecto: 5 – boa memória

Forma física: 6 – de vista ninguém dá nada	Forma física: 6 – “hétero top”
Combate: 2 – um pouco velho para isso	Combate: 2 – se garante na ameaça
Interação: 4 – sabe escutar	Interação: 4 – bom de papo
Subterfúgio: 3 – não muito sutil	Subterfúgio: 3 – mente bem
Percepção: 6 – sabe o que procurar	Percepção: 6 – fofoqueiro
Cultura: 4 – já passou por muita coisa	Cultura: 4 – bem informado
Profissão: 4 – pescador	Profissão: 4 – militar

Além dos aspectos das características e habilidades, os personagens têm estes outros:

• Conceito: palavra ou frase que resume sua essência;
• Marcos: frases descritivas de momentos chave de sua vida;
• Citação: frase que define sua maneira de pensar e agir;
• Complicações: situações que podem colocar o personagem em desvantagem ou lhe causar problemas em determinados momentos.

Testes

Os testes em Cultos são feitos rolando 3d10. O número médio da rolagem (exemplo: em um resultado 3, 6 e 9, o médio é 6) é somado com uma característica e uma habilidade, independentemente de seus aspectos, e o resultado é comparado com uma dificuldade definida pelo mestre. Sendo igual ou maior, o personagem foi bem sucedido em sua ação, se menor, mal sucedido. Críticos acontecem com dois ou três resultados 10 ou 1 nos dados.

Aqui entra a parte mais legal dos aspectos: eles não servem somente para caracterizar personagens, eles também têm função mecânica! São utilizados para manipular o resultado da rolagem.

Caso um personagem se encontre em uma situação que algum aspecto seu é aplicável – pode ser tanto a descrição de alguma característica quanto sua citação –, seu jogador pode gastar 1 ponto de Drama (todos começam com 5), rerolar quais dados quiser dos três jogados e se utilizar do maior resultado ao invés do médio. Para ganhar pontos de Drama o jogador precisa fazer o inverso: se utilizar de um aspecto do se personagem para se prejudicá-lo, deixando que o narrador defina quais dados serão rerolados e usar o menor resultado no teste.

Sabe o que é mais divertido ainda? Tudo o que o mestre descrever, pode vir a ser aproveitado como aspecto para ajudar o personagem! Aquele tique que o vilão tem quando mente ou aquela escada que o inimigo está usando ser feita de madeira? Então, você pode gastar 1 ponto de Drama do seu personagem e alterar a rolagem dos seus dados ou os dos NPCs se utilizando disso.

Os poderes e o terror dos Mitos

Certo, mas cadê a magia e o terror dos Mitos? Bem, isso é com as habilidades Ocultismo e Arcanas.

Ocultismo reflete o conhecimento autêntico do personagem sobre o sobrenatural, ainda que ele possa estar misturado com lendas e superstições. Você pode inventar quaisquer aspectos para o ocultismo do personagem, como, por exemplo, “arqueologia do impossível”, “sonhos visionários”, “intuição sobrenatural” ou “sussurros da escuridão”.

As Habilidades Arcanas são as magias concretas que o personagem conhece – e sim, você também as inventa completamente (em conjunto com o mestre), mas o livro básico traz uma lista delas para ajudar. Mais, cada habilidade arcana pode ser conjurada com efeitos em níveis diferentes: de forma menor, como algo mágico relativamente imperceptível; de forma média, o que implica uma manipulação da realidade de um modo evidentemente sobrenatural; e de forma maior, representando uma manipulação flagrante e aterrorizante das leis da natureza.

Quanto mais Ocultismo e Habilidades Arcanas um personagem aprender ou tiver contato, mais os Mitos o afetam e mais sua Degeneração cresce. Começa com uma pequena mudança, física ou psíquica, que ele mesmo dificilmente reconhecerá, e pode terminar com ele perdendo os últimos vestígios de humanidade, ganhando uma aparência grotescamente monstruosa e perturbadora e tendo uma mente incompreensível para um ser humano normal.

O cenário: “meu culto descobriu que um site da deep web é um grimório para invocar Nyarlathotep!”

Das vezes que joguei CoC, eu sabia que meu personagem terminaria louco ou morto. Até aí tudo bem, é a proposta do jogo. Porém, eu não me sentia imerso nele, pois sabia como isso iria acontecer. Sempre saí das mesas dizendo “poxa, o legal seria se eu fosse um dos cultistas…”

Eu estava certo.

Quando você está do lado dos que (acham que) entendem os Mitos e se aproveitam de seus poderes, a emoção muda completamente. Medo se mistura com ansiedade e sua vontade é entrar de cabeça no mistério ao invés de fugir dele. E você faz isso porque, apesar de saber que é extremamente perigoso, as recompensas compensam (ou assim acredita). Adorar uma entidade cósmica indescritível pode te tornar uma aberração inumana no final, mas isso importa se em troca ganhar conhecimento inimaginável e vida eterna? (Será mesmo esse o único preço?) Aliás, não seria esse o verdadeiro objetivo?

Para garantir esse clima, Cultos Inomináveis apresenta regras para os jogadores criarem um culto do qual fazem parte. Pode ser um grupo gigante de cultistas, com um espião em cada grande empresa mundial sendo os personagens alguns desses espiões. Ou talvez ser um grupo pequeno, só com os personagens dos jogadores, que se conheceu em fóruns obscuros da internet e decidiu compartilhar informação mística.

Além disso, o sistema gera conexão dos jogadores com uma proposta de jogo que integra os Mitos ao mundo contemporâneo. Você encontrará anéis, ídolos, adagas e outros itens tradicionais do imaginário arcano imbuídos de loucura e segredos dos Mitos, mas também inteligências artificiais corrompidas. Afinal, se um diário escrito a mão por alguém que viu Shub-Niggurath espalha insanidade, o mesmo deve acontecer com um tablet ou um site que contenha imagens desse diário.

O clima de jogo: moral cinza e a loucura causada pelos Mitos

Outra coisa sensacional de Cultos Inomináveis é que te fazer jogar como um cultista te põe de frente a situações não muito agradáveis e se questionar se o poder realmente vale o preço. Um sacrifício pessoal você pode até estar disposto a fazer, mas e o sacrifício (figurativa e literalmente) de outro? Se o poder vem ao custo de atrocidades (e muitos vem), está disposto a faze-las? Mais que isso, você sabe o que certos poderes e criaturas dos Mitos podem fazer e tem a possibilidade de impedir, só que a um alto preço, vai pagar?

Algumas atrocidades e preços eu espero, encarecidamente, que você não esteja disposto a arcar, ainda que na fantasia do RPG. Mas mesmo que não esteja, você colocará seu personagem em uma situação em que ele terá que fazer uma escolha e isso terá consequências. Aparece, agora, a regra que os RPGistas mais gostam sistemas lovecraftianos: Sanidade.

Sim, você entendeu bem, a Degeneração que mencionei lá em cima é diferente da Sanidade. Lá você mede o quão afetado e alterado pelos Mitos o personagem foi. Aqui você verifica o quão capaz de suportar ainda ser exposto aos horrores cósmicos ele é. Ou seja, Cultos Inomináveis incorpora a mecânica de jogo mais querida pelos jogadores e ainda a amplia de uma forma extremamente inusitada.

O que foi publicado de Cultos Inomináveis até agora

Por enquanto a Nosolorol publicou quatro livros: o básico de regras, Cultos Inomináveis; um de aventuras, Postnomicon; um de cenário, com três aventuras, um grande culto e algumas magias novas, Oculto em Branco; e uma extensa campanha, Filhos de Nyarlathotep. Além disso, foram publicadas algumas aventuras em revistas e eventos e há poucos dias atrás ela anunciou a primeira de uma série de aventuras independentes, porém interligadas por uma trama maior.

Os nomes dos livros estão todos em português aqui porque, como eu disse lá no começo, a Buró publicou absolutamente todos eles aqui no Brasil, inclusive as aventuras em revistas. Ainda será publicado quatro materiais inéditos, apenas aguardando a Nosolorol os enviar para o Brasil. Estou muito ansioso para que sejam essas aventuras independentes!

Palavras finais

Primeiramente, quero deixar um elogio ao trabalho da Buró com esse RPG. Não só os livros ficaram lindos e impecáveis como todo bom jogador gosta de ter em sua estante, mas também o financiamento coletivo foi de tirar o chapéu. Eu já participei de outros financiamentos e tive tanto boas quanto péssimas experiências, mas o de Cultos Inomináveis criou a categoria de experiência excelente.

Logo que apoiei o projeto, recebi a versão preliminar em PDF do livro base inteiramente traduzida e que foi depois substituída pela versão definitiva. Da mesma forma, os demais livros também tiveram versão digital preliminar e depois definitiva. Além disso, foram encaminhados e-mails de forma consistente, sem excessos, e a entrega foi feita sem atraso algum. A editora ainda mantém uma planilha no Trello, pública, para acompanhamento praticamente em tempo real de como anda o projeto (afinal, faltam aqueles materiais inéditos). Como se não bastasse, por ter apoiado Cultos Inomináveis recebi a versão digital de Kult: Divindade Perdida como agradecimento – tanto a versão preliminar como a definitiva! – algo que é uma política da editora chamada “Lá e de volta outra vez”! Ficam aqui meus parabéns!

Por fim, uma dica: se você achou o sistema interessante, fique de olho nas mídias sociais da Nuckturp 😉

Qualquer dúvida sobre o sistema, não hesitem em perguntar aqui em baixo!