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Edgerunners: Transumanismo, Saúde e Anarquia

Edgerunners é a mais nova obra de arte do gênero Cyberpunk. Este anime é uma produção entre Netflix, CD Project Red e Studio Trigger. Netflix dispensa apresentações. A CD Project Red é a atual dentetora dos direitos autorais das franquias “Cyberpunk” e “The Witcher”. Ouso dizer que esse estudio de games foi quem colocou as duas franquias no mapa. Pois antes deles, Cyberpunk era um sistema de rpg de mesa que fazia concorrência com “Shadowrun”. E claro “The Witcher”. Esse gigante, essa lenda. Seja o jogo “The Witcher 3: The Wild Hunt” ou a série da Netflix, com certeza você já ouviu falar dele ou pelo menos do Lobo Branco, Geraldinho da Riviera Geralt of Rivia.

Já o Studio Trigger, você provavelmente não ouviu falar a menos que seja amante de animes. Como eles foram formados por empregados do estudio Gainax (antigo gigante responsável por Evangelion), não é de se esperar menos deles senão grandeza. Eles são os responsáveis por grandes histórias como Kill la Kill e Darling in the Franxx.

Agora que estabelecemos que a galera por trás de Edgerunner sabe o que está fazendo (ou não, você decide), vou estabelecer aqui três declarações:

  • O artigo vai ficar delicado. A série é 18+, não tem como eu escrever ou mostrar nada sobre ela que não seja também 18+.
  • Vou falar, de uma forma ou de outra, com spoilers. Então se não você não viu ainda, vai lá ver. A série está entre as melhores do ano.
  • Portanto estou presumindo que você viu a série. Não vou apresentar os personagens.
Cyberpunk Edgerunners NDx
Reprodução artística de mim vendo a série com meus amigos. Colorizado, 2022.

Cyberpunk: Edgerunners vs. 2077

Primeiramente sobre o tópico mais fácil de destrinchar: A comparação da série com o jogo. Em síntese, a fidelidade da reprodução da cidade, armas, roupas, carros, tudo é simplesmente fantástica! Inclusive aplaudo o carinho com o qual as gírias entre o jogo e a série. Constantemente termos como cromo (implantes cibernéticos) e eddinhos (grana) são usados e é magnífico! Frequentemente eu me senti o Leonardo DiCaprio apontando para TV com um copo de refrigerante na mão e pensando “Eu já passei ali!” ou “É um dos personagens do jogo!”.

Meme DiCaprio Apontando

Ocasionalmente até mesmo personagens secundários do jogo aparecem na série. Como por exemplo a personagem Rogue, uma fixer que aparece de relance nos primeiros episódios em seu bar Afterlife. Até mesmo o Delamain, a Inteligência Artificial taxista fez uma aparição na série! Por outro lado o único personagem notável do Cyberpunk 2077 a aparecer na série foi o Adam Smasher. Logo é seu papel na série que mostra que Edgerunners se passa antes do jogo.

Comparação Adam Smasher
Comparação entre o jogo e a série do Adam Smasher

Cyberpunk como um gênero

Sinto que a primeira coisa que devo fazer é resumir o que se esperar do gênero Cyberpunk. Primeiramente tenha em mente que esse é um gênero distópico. Nascido na década de 1980 como sub-gênero da ficção cientifica, o Cyberpunk se destaca por desenhar um ambiente com tecnologia muito avançada e qualidade de vida baixíssima (High tech, low life). Portanto as obras desse gênero mostram personagens com aprimoramentos cibernéticos e a habilidade de surfar a internet como se sua mente se teletransportasse para o metaverso. Concluo que em termos de tecnologia não estamos muito longe do que os autores da época imaginaram.

Mais um dia em Night City
Mais um dia em Night City

Sobre a qualidade de vida, em resumo, é horrível. O indivíduo é sobrepujado constantemente por megacorporações, vive rodeado de violência e se mantém apenas com a ilusão do sonho de uma vida melhor. Ou apenas com prazeres imediatos. A sociedade é opressora. A marginalidade é o padrão. Os mais pessimistas dirão que também já chegamos nesse patamar como sociedade.

Mas então como são contadas as histórias Cyberpunk? Se a vida normal é péssima, os personagens principais partem para a ilegalidade. Comumente mercenários. Porém o final clichê desses personagens é a morte. É como se as obras dissessem que tudo está perdido, não há esperança, os vivos são os azarados.

O final dos personagens
O fim.

Homem versus a Máquina

Muitas obras exploram a dualidade entre homem e máquina. No caso de Edgerunners, o tema é colocado como Tecnologia vs. Espírito. Frequentemente a série explora a chamada ciberpsicose que é o ponto onde a mentem humana é sobreprujada pela tecnologia implantada em seu corpo. Portanto levando a loucura. A primeiramente os ciberpsicopatas, termo dado àqueles que sucumbiram, são vistos como animais a serem abatidos.

No entanto o paralelo é mais profundo. Eu vejo como uma metáfora sobre a resiliência do espírito humano. Pressupondo uma sociedade doente e opressora. A nossa mente não consegue aguentar, existe um limite que quando ultrapassado se torna ansiosa ou depressiva. Especificamente na série, o que prolonga a vida dos personagens são os implantes cibernéticos. Quanto mais cromo ou melhor a qualidade dele, mais o personagem dura na série. Portanto eu entendo como nossos vícios. Hábitos que mantém a mente doente mas aguentando a dor.

Ciberpsicose, o momento que a mente quebra
Ciberpsicose, o momento que a mente quebra

A tecnologia agindo como um vício

A tecnologia faz o personagem forte, eles aguentam a tiros, enfrentam outros criminosos e até colisões de carros. O cromo não os deixa morrer, assim com os vícios (e incluo remédios aqui) mantém as nossas mentes doentes sãs. No entanto, como na vida real, chega um ponto em que a mente quebra. A ciberpsicose é portanto o momento em nós quebramos, enlouquecemos ou escolhemos passar dessa pra melhor.

De certa forma a série reconhece o problema, pois nos episódios finais a personagem Lucy pede repetidamente ao protagonista David que procure ajuda. Em determinado momento ele começa a mostrar os primeiros sintomas e aqueles mais próximos deles pedem para que ele pare ou procure ajuda. Com certeza uma frase que ressoa com muitos de nós. Inclusive seu “doutor” lhe dá doses cavalares de um soro para se manter são e um aviso: David estava caminhando para o abismo e depois disso vem o inferno.

Opressão institucional

O segundo tema que me saltou aos olhos na série é a forma como as megacorporações agem. Primeiramente eu tenho que defini-las. No cenário de Cyberpunk quem manda na sociedade são as megacorporações (corpes). Elas são a forma de governança de Night City. Portanto eu abstraio-as como formas de governança em geral. Leia-se megatechs, ditaduras, mafias, ou seja, instituição corruptas com uma quantidade descomunal de poder nas mãos.

Simultaneamente essas instituições agem como entidades em si. Elas não tem um rosto, não tem um responsável, elas tem logo e agem como sistemas. Veja, a vida humana nesse mundo não tem valor. O corpo de uma pessoa não passa de uma engrenagem e o sangue é o óleo que as lubrifica. Quando a sua utilidade acaba, ela é reposta por uma nova e o sistema volta a trabalhar como se nada tivesse acontecido.

David coberto de sangue
Sangue é constante.

No último episódio, dois dos agentes da megacorporação Arasaka concordam que a situação saiu do controle. A agente com rank superior manda a sua contraparte para a morte e a justifica em suas próprias palavras como:

Alguém tem que levar a culpa e não serei eu.

Perceba que os agentes não tem nome, eles tem corporação: Arasaka. É o sistema que os define, não suas identidades individuais. O sistema é phoda parceiro, já dizia capitão Nascimento.

Declínio e Ascensão

No fim da série David e Lucy tem dois finais bem diferentes. David cai no abismo e Lucy ascende a liberdade. Primeiramente note que os destinos dos personagens são diretamente ligados à como eles agem em relação ao sistema. David, mesmo que inconscientemente, segue as ordens do sistema. Enquanto que Lucy foge dele.

Em relação ao David, seu destino é selado no momento em que ele escolhe utilizar o ciberesqueleto. Note que ele fez exatamente o que sistema quis. O sistema forçou essa situação, o encurralou. Mesmo se rebelando contra sistema, quando ele causa mais destruição do que o previsto, sua utilidade para o sistema acaba. Então David termina morto por Adam Smasher, que pode-se dizer que é um superior na hierarquia do sistema. David nunca passou de uma marionete a ser descartada. Veja que durante a série, ele é fisicamente mostrado caindo. Se nos primeiros episódios ele se jogava do seu andar, no último seu ciberesqueleto não conseguia mais ficar em pé sobre seu próprio peso. Uma alegoria do seu declínio mental e utilitário.

Lucy e o custo da liberdade
Lucy e o custo da liberdade

Em contrapartida temos a Lucy. A sua alegoria é inversa à de David e ela também é a única personagem a sobreviver. Sua origem foi ser treinada para ser uma engrenagem nos confins do subterrâneo. Ela ascende conforme ela deixa de seguir as ordens dos corpes. Primeiro fugindo do subterrâneo para as ruas, depois sendo raptada e levada para as alturas em coberturas de prédios ou carros voadores. Sua ascensão se completa quando ela atinge a fronteira final: A lua.

Se seguir o sistema, mesmo que inconscientemente, te leva ao declínio, portanto rejeita-lo te leva a verdadeira ascensão. No caso da série, Lucy expressa que a lua é onde ela estaria segura, longe das garras do sistema.

Anarquia como verdadeira liberdade

O final da série então tem uma certa conotação anarquista. Pois anarquia é definida como inexistência de sistemas coercitivos. Dado que as corpes são sistemas naturalmente coercitivos, por exemplo a Arasaka impondo sua vontade no David ao força-lo a se integrar com o ciberesqueleto), a ausência de tais instituições é, por definição, um ambiente anarquista.

Ao estipular que a lua é colonizada, pressupõe-se uma estrutura de governança. Então note que anarquia não é ausência de governança ou ordem, mas sim ausência de instituições coercitivas. Logo com a ascensão alegórica de Lucy à lua, onde ela atingiu a liberdade de seus medos, somado com a falha de David ao enfrentar o sistema, conclui-se que a verdadeira liberdade reside na ausência de tais instituições. Ou seja, na anarquia.

Rebecca
Rebecca é a outra alegoria sobre o peso esmagador do sistema

Edgerunners, uma obra-prima de 2022

Sei que muitos vão discordar da minha visão sobre Edgerunners. Na verdade, pode ser tudo fruto da minha ciberpsicose. No entanto a série é excelente e isso é um fato. Tanto que dados da Steam mostram que o interesse pelo jogo Cyberpunk 2077 se reacendeu, de forma semelhante ao que aconteceu com The Witcher 3 quando a série live-action foi lançada. Eu quero mais. Seja do jogo ou seja de uma segunda temporada. Detalhe: Ainda existe bugs no jogo. Eu sei por que eu acabei de baixar e estou jogando nesse exato momento. Enfim, o importante é aproveitar!