Gatilhos emocionais no RPG
Há pouco tempo nosso amigo Snow escreveu um excelente artigo sobre como lidar com gatilhos emocionais no RPG ao falar de três ferramentas de segurança para o jogo. Esse artigo e uma conversa na Academia de Mestres a respeito do assunto me despertaram alguns questionamentos. Todos os gatilhos que podem ser disparados são identificáveis e seus disparos previsíveis? Conseguimos sempre perceber o disparo de algum assim que isso tenha acontecido? Devemos sempre evitar abordar temas sensíveis em jogo, então?
Minha resposta para todas essas perguntas é não, pelo simples fato de que nem todo gatilho emocional é óbvio como costumamos imaginar. Cada pessoa é única, tendo suas experiências e visões de mundo próprias, o que implica em duas pessoas podem, e provavelmente vão, perceber uma mesma situação de formas diferentes e exclusivas. Por vezes nem nós mesmos conhecemos um determinado gatilho nosso.
A importância de discutirmos gatilhos emocionais no RPG
Como o Snow bem disse:
o gatilho disparo emocional dispara os mecanismos depressivos, de ansiedade e de quaisquer outras doenças emocionais que uma pessoa tenha. Esses gatilhos podem ser disparados por qualquer evento, imagem ou narração.
No RPG ter isso em mente é especialmente importante. Conforme explicado pelo Vinzaum, do Game Chinchila, em sua palestra na GenCon 2021, ao jogarmos RPG estamos psicologicamente vivenciando o que está sendo narrado. Isso significa que em certa medida aquilo que é vivenciado pelo personagem que interpretamos é também vivenciado por nós, ainda que em menor nível. Como gatilhos envolvem emoções, isso já é o suficiente.
Importante ressaltar que mestres também têm gatilhos! Ao falarmos do tema no RPG é muito comum a responsabilidade por não acionar gatilhos recair nas costas dos narradores. Isso tem sua parcela de verdade na medida em que eles têm maior possibilidade de influenciar, quando já não têm conhecimento prévio, o que será posto em jogo. Porém os jogadores também fazem parte da narrativa, pois eles descrevem como interagem com NPCs e com os demais jogadores. Portanto, sempre que eu disser “jogadores” neste texto, entenda como “absolutamente todos os participantes da sessão de jogo”.
Dito isso, agora podemos responder àquelas perguntas!
Por que não é possível conhecer todos os meus gatilhos emocionais ao jogar RPG e evitar que sejam disparados?
Quando falamos de gatilhos no RPG sempre vem à mente determinados assuntos sensíveis que podem deixar pessoas desconfortáveis e, eventualmente, desencadear lembranças de traumas ou sentimentos ruins, tais como estupro, pedofilia, tortura, preconceitos das mais diversas espécies, transtornos e fobias. Entretanto nossa mente tem sutilezas que nem nós mesmos percebemos.
Imagine que um ente muito querido de um jogador seu que faleceu em um acidente de carro há 3 anos. Vocês estão jogando um RPG contemporâneo e narra uma cena da seguinte forma:
“Vocês estão almoçando no restaurante que vão com frequência. Precisam discutir como rastrear aquela organização que vem seguindo vocês a tempos e querem fazê-la saber que vocês sabem dela. A casa está cheia, mas sendo amigos do dono, conseguiram um lugar na janela. Nada de estranho lhes chama a atenção desde que chegaram. De repente, vocês ouvem da rua o som de um carro freando e batendo em algo. Uma pessoa foi atropelada, possivelmente um membro da organização que estava seguindo o grupo”.
Nada gráfico foi narrado. Nada excepcional foi narrado. Entretanto pode ser que memórias de maus sentimentos e de um período ruim da vida daquele jogador tenham reaparecido. Nem o jogador esperava esse tipo de coisa, afinal, fazia três anos do acidente, anos que ele sequer lembrava daquele familiar. A lembrança, porém, surgiu, “do nada”.
É pouco provável que em alguma ferramenta de indicação prévia de gatilhos conste “acidentes de carro” ou mesmo que o jogador em questão viesse a pensar nisso como um gatilho. E é aqui que tiro minha primeira conclusão sobre o tema:
É possível até mesmo descobrir um gatilho seu desconhecido em jogo. Portanto, ao jogar RPG é essencial o respeito a qualquer dor ou problema, tanto em relação aos demais jogadores quanto em relação a você consigo próprio.
Por que nem sempre é possível perceber que um gatilho emocional foi disparado ao jogar RPG?
Aquelas sutilezas da nossa mente não se limitam a como o gatilho será disparado. Elas também abordam quando. Sabe aquela sensação de passar por uma grande dificuldade em certo momento e depois lembrar desse período como algo bom? Pois bem, é possível acontecer o inverso.
Se ao jogarmos RPG vivenciamos o que nossos personagens vivenciam, não é difícil imaginar que no calor do momento não vejamos um problema, mas depois, quando relembramos da sessão de jogo, a sensação ruim aparece. Na vida real isso é comum acontecer, por exemplo, no término de relacionamentos tóxicos ou no fim de empregos abusivos, pois somente quando acabam que vemos os sinais claramente. No RPG isso pode acontecer ao relembrar de certa cena e daí perceber algo não te fez bem.
Quando isso acontece pode acontecer duas coisas: você entende por que o jogo não estava tão bom quanto queria que estivesse ou a partir dali a sua percepção sobre ele muda e ele deixa de ficar bom.
Eis que chegamos à segunda resposta:
RPG não é um jogo qualquer. Ele cria laços e experiências que vão te acompanhar muito tempo. À medida que você muda como pessoa, sua visão sobre essas experiências e esses laços pode mudar.
Devemos sempre evitar abordar temas sensíveis em jogo?
Claro que não. Precisamos saber, entretanto, que tipo de aventura e grupo estamos jogando para fazer isso. Para avaliar essas duas coisas, entretanto, não podemos generalizar. Ideias do tipo “é uma época medieval, é normal acontecer esse tipo de coisa, e todos aqui são adultos e têm que ter maturidade pra jogar” são uma besteira imensa e absurda.
Ao jogar RPG temos a capacidade de criar mundos e histórias conforme a nossa vontade. Não há nada que justifique se utilizar de elementos que causem dor e incômodo aos jogadores em um ambiente de tamanha liberdade.
Abordar temas sensíveis, portanto, requer:
- Todos os jogadores conheçam o melhor possível seus próprios gatilhos e os dos demais jogadores,
- Definir os gatilhos disparáveis e forma de narrá-los (explícita ou indiretamente, somente mencionado ou descrito em detalhes etc.), antes mesmo de o jogo começar; e
- Respeitar qualquer incidente e pedido dos jogadores em relação à narrativa do jogo.
Sendo assim, aqui está a última conclusão:
Estar acompanhado de mecanismos de segurança é a melhor forma de conseguir preencher esses requisitos. Especificamente aqueles trazidos pelo Snow, pois eles cobrem antes, durante e depois do jogo, o que é o ideal.