HQs para inspirar sua narrativa de RPG
Quem já leu a minha biografia aqui no blog da Nuckturp, sabe que sou um grande fã de quadrinhos. Se você não leu, bem, acabou de descobrir essa informação. Ler HQs é meu hobby principal, mas nesses tempos de pandemia que vivemos, o RPG tem competido bravamente para ocupar esse posto. Então, por que não juntar as duas coisas? Pois bem, vou aqui indicar cinco HQs para inspirar sua narrativa de RPG!
Por “inspirar sua narrativa” quero dizer que vou sugerir quadrinhos que te façam refletir sobre como mestrar e não o que mestrar, ainda que também te tragam inspiração para novas ideias. Seria fácil dizer “leia as HQs do Conan e veja como é um cenário de baixa fantasia medieval” ou “leia os mangás do Junji Ito e se inspire para narrar campanhas de terror”, mas esse tipo de indicação você acha aos montes internet a fora. Por isso aqui quero ser mais provocativo e passear por diversos gêneros de história e indicar algumas das minhas HQs favoritas.
Juiz Dredd
Publicado no Brasil pelas editoras Mythos (edições inglesas da revista 2000 AD) e Geektopia (edições estadunidenses da IDW Publishing), Juiz Dredd se passa em Mega City, uma megalópole distópica dos EUA, cercada por um grande deserto radioativo, a partir do ano de 2099. A maior parte dos postos de trabalho foi ocupada por robôs ou inteligências artificiais, fazendo mais da metade de sua população se encontrar desempregada e viver de caridade, subsídios ou crimes. Para tentar controlar o caos na cidade, foi criado um sistema de justiça onde a polícia passou a também ser juíza, júri e executora, sentenciando e impondo a pena no flagrante do crime. Dredd é o juiz mais rígido e inclemente de todos, sendo ele um clone do próprio fundador desse sistema.
Por que ela está entre as HQs para inspirar sua narrativa de RPG? Primeiro porque Juiz Dredd faz uma releitura do cyberpunk que pode lhe apresentar possibilidades de jogo. Apesar da ambientação cyberpunk, não são grandes corporações que exercem o poder, mas sim o Estado, que embora extremamente repressor, é democrático. Além disso, as histórias navegam por diversos gêneros, como o sobrenatural (Nas Garras do Juiz Morte e Sobrenatural), a comédia (ah, os especiais de natal), o noir (Mandroide) e, a mais comum, ação frenética (Guerra Total, Heavy Metal e Mega-City Zero).
Segundo porque é uma HQ que questiona moral e política sutilmente, porém certeira, algo que quando feito corretamente no RPG marca os jogadores eternamente. Algumas histórias são focadas nisso (como América, Origens e Exílio – minhas favoritas), mas até quando não são, levantam alguns desses questionamentos. Esse sistema criminal punitivista é justo ou mesmo eficiente? A pobreza e a criminalidade que Mega City são reflexo dele ou o contrário?
Turma da Mônica: Laços
Turma da Mônica: Laços faz parte da linha Graphic MSP de quadrinhos da Turma da Mônica, que são HQs com tramas longas (80 ou 96 páginas), mais complexas que as tradicionais e com arte diferenciada. Publicada pela editora Panini, tem roteiro e arte magníficas dos irmãos Lu e Vitor Cafaggi e foi a primeira edição dessa linha com a turma clássica reunida.
Por que ela está entre as HQs para inspirar sua narrativa de RPG? Ela mostra o quão emocionante é uma aventura a depender da perspectiva dos personagens e proporção do desafio, não necessariamente da complexidade deles.
A HQ conta a história de quando Floquinho, o cachorro do Cebolinha, desapareceu e a trupe se reuniu para procura-lo. Para crianças, procurar um cãozinho desaparecido pode ser uma aventura incrivelmente épica! Além de isso ser uma grande aventura para um grupo de crianças, os riscos que elas correm são reais para elas, ainda que não tanto para adultos. É uma trama extremamente simples, porém o desafio proposto para esses personagens especificamente é extremamente difícil.
Mouse Guard, lançado no Brasil pela Retropunk, é um sistema de RPG que exemplifica o que estou sugerindo. Nele você joga com ratos de capa e espada, que vivem para defender seus amigos de predadores e proteger as cidades que criaram de perigos naturais. Para esses pequenos ratinhos, as espadas têm o tamanho de agulhas de costura, uma chuva leve é uma tempestade, uma poça d’água um enorme lago e um gato o mesmo que um dragão ancião.
Se não conseguir ou puder conferir a HQ, dê uma chance ao filme que a adaptou, lançado em 2019!
Marvels
Marvels foi uma mini-série publicada em 1994 pela Marvel, com roteiro de Kurt Busiek e arte de Alex Ross. Ela retrata pessoas comuns vendo as ações de super-heróis e como essas ações afetam suas vidas. O conceito foi tão inovador que no ano seguinte a dupla de uniu ao desenhista Brent Anderson e passaram a publicar Astro City pela Image (concluída, contudo, no saudoso e extinto selo Vertigo, da DC), uma série contínua com a mesma proposta de Marvels, porém em um universo e com heróis totalmente novos e próprios. Ambas foram publicadas pela Panini aqui no Brasil, e Marvels também pela Salvat, na coleção Graphic Novels Marvel.
Por que ela está entre as HQs para inspirar sua narrativa de RPG? Porque a história daqueles que não são heróis pode ser tão interessante e cativante quanto daqueles que são.
Raramente são exploradas em aventuras de RPG as consequências dos atos de grandes aventureiros e vilões, mas elas têm um enorme potencial. Podem tanto inspirar a história de novos heróis, quanto gerar ganchos narrativos pra novas aventuras.
Ao narrar, lembre-se que as ações dos personagens têm consequências no mundo de jogo, não somente físicas, como locais destruídos, ou para NPCs que tenham interagido com os jogadores, mas também para com toda a população local e nem todos têm a mesma visão. Quais os reflexos de um grupo de personagens policiais acabar com uma organização criminosa? Como ficou o local onde essa operação ocorreu? Se ele foi destruído, quem foi impactado? Temos mais pessoas satisfeitas ou insatisfeitas com o resultado? Não deixe de aproveitar esses ganchos em suas aventuras!
Bando de Dois
Recém relançado pela Zarabatana em uma edição especial colorida, Bando de Dois pode ser considerado um clássico dos quadrinhos brasileiros. Com roteiro e arte de Danilo Beyruth, conta a história de Tinhoso e Caveira de Boi, os únicos sobreviventes do bando de cangaceiros dizimado pelo Tenente Honório. Eles decidem vingar seus companheiros recuperando suas cabeças decepadas que estavam sendo levadas para serem exibidas como troféus na capital.
Por que ela está entre as HQs para inspirar sua narrativa de RPG? Ela mostra que qualquer estilo de história é facilmente adaptável para o mundo que você quer jogar.
Tendo a mesma atmosfera árida e dura e personagens movidos por ódio ou esperança, Bando de Dois pode facilmente ser entendido como um faroeste. Porém não se passa no velho oeste estadunidense, mas sim no sertão nordestino brasileiro.
Se você aprender bem a lição desse quadrinho, conseguirá incorporar tramas noir às suas aventuras medievais e criar um clima de investigação ao seu jogo cyberpunk!
Além disso, Bando de Dois é uma excelente narrativa de ação focada em dois personagens, algo bem comum de se ver em aventuras de RPG. Se não se inspirar em adaptar alguma temática específica ao seu mundo onde a princípio achou que ela não se encaixava, ao menos terá boas ideias para aventuras.
Um Pedaço de Madeira e Aço
Escrito e desenhado pelo francês Christophe Chabouté e publicado no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, Um Pedaço de Madeira e Aço é um quadrinho mudo que retrata, em 340 páginas, o que se passa em um banco de praça.
Por que ela está entre as HQs para inspirar sua narrativa de RPG? Porque campanhas baseadas em objetos inanimados são extremamente instigantes! Mentira. Desculpem, mas eu não podia perder a piada. O real motivo é que essa HQ é – na minha opinião – a aula suprema de narrativa.
Imagine uma história sem fala alguma, mas que te faz montar todos os diálogos dos personagens em sua mente só de olhar suas expressões. Que te faz se apegar aos personagens só porque acompanha suas rotinas diárias ao passarem em frente a um banco de praça. Isso é Um Pedaço de Madeira e Aço!
Lendo esse quadrinho você vai entender o valor de “mostrar ao invés de contar”, pois ele é a prova máxima de que detalhes e maneirismos fazem diferença e que ações criam vínculos mais fortes do que palavras.
O valor de técnicas narrativas como essas é imenso. Elas permitem, por exemplo, que você deixe de criar diálogos explicativos para dar sinais discretos de alguma coisa na expectativa que seus jogadores percebam. Se não perceberem, jogue na cara deles depois que todas as pistas estavam lá e veja como reagem!
Elas também servem para fazer você perceber quão cativante um personagem pode ser somente por agir de determinada forma, gerando expectativa nos jogadores. E experimente quebrar essas expectativas para ver o que acontece!
Um Pedaço de Madeira e Aço ainda tem muitas outras lições que você pode aprender ao ler, eu somente falei das óbvias. Acredite, dificilmente você encontrará uma história com tamanha profundidade e sensibilidade quanto essa, mesmo sendo muda.