Para mestres RPG

Introdução ao OSR, o retorno às raízes do RPG

OSR é uma sigla para Old School Renaissance, um movimento de volta às raízes do RPG.

Mas qual é esse “RPG raiz”?, você provavelmente se pergunta. Pois bem, é a primeira edição de Dungeons & Dragons, o famoso D&D, ou no máximo sua versão subsequente, o Advanced Dungeons & Dragons (AD&D). Não à toa o movimento surgiu a partir de 2000, quando a Wizards of the Coast, detentora dos direitos de publicação de todo material de D&D, criou a licença OGL permitindo que novos sistemas e cenários fossem desenvolvidos a partir das regras básicas do D&D, ainda que modificadas e dentro de alguns limites.

Capa de A Quick Primer for Old School Gaming de Matthew J. Finch

Por serem “retro-clones” do D&D original ou do AD&D, sistemas OSR de RPG costumam, então, ter as seguintes características: rolagem de dados baseada em dados de 20 faces (o consagrado d20); personagens definidos pelos 6 atributos básicos de D&D; inexistência de perícias; impossibilidade de combinar raças e classes (não existem “anões clérigos” ou “anões guerreiros”, somente “anões”, com características próprias dessa raça que é ao mesmo tempo classe); manuais repletos de tabelas para que o máximo de elementos possível seja gerado aleatoriamente, desde os próprios personagens até os desafios que eles encontram; letalidade alta; e regras simples. Alguns sistemas podem mudar esses elementos, mas não a ponto de descaracteriza-los.

Mas por que voltar a jogar com regras e estilo das décadas de 1970 e 1980? O RPG não ficou melhor de lá para cá? A maioria dos jogadores, inclusive alguns entusiastas do OSR, acredito, dirá que sim. Porém de lá para cá um estilo de narrativa e de dinâmica de jogo foi perdido, e é isso que o movimento tenta recuperar.

Para explicar que estilo perdido é esse, vou recorrer aos quatro princípios definidos por Matthew J. Finch, em seu A Quick Primer for Old School Gaming, um documento que se tornou praticamente a cartilha do OSR, como norteadores dos jogos Old School:

1. Não aplique regras, faça-as (“Ruling, no rules”)

As ações dos personagens não devem ser avaliadas a partir das regras do jogo, mas sim da narração da cena e do quanto os jogadores decidem interferir nela. Ao invés de procurar por uma regra que indique como ter sucesso ou falha em uma determinada ação, o jogador simplesmente narra a ação de seu personagem e o Mestre, a partir de (bom) senso comum, decide o que acontece, que elementos interferem na nela e se será necessária alguma rolagem e sua dificuldade.

Vamos usar um dos exemplos do próprio Quick Primer para explicar a diferença entre escapar de uma armadilha em um RPG OSR e em um moderno. Esse exemplo, inclusive, vai servir para nos ajudar com os demais princípios:

Moderno:

Mestre: Um corredor longo segue à frente de vocês e termina em escuridão.
Jogador (jogando com um ladino): Procuro por armadilhas.
Mestre: Qual seu valor para “encontrar armadilhas”?
Jogador: 15.
Mestre: [após decidir que a armadilha é “padrão”, ele define que a dificuldade para encontra-la é 15] Ok, role um d20.
Jogador: 16.
Mestre: Dando uma checada minuciosa, você encontra uma fissura no chão que indica algo estranho. Quando segue o rastro dela, percebe que se trata de um alçapão preparado para abrir abruptamente.
Jogador: Consigo desarmar essa armadilha?
Mestre: Qual seu valor para “desarmar armadilhas”?
Jogador: 12. Rolei 14.
Mestre: Certo, você logo encontra o fecho que detecta o movimento que abre o alçapão. Cuidadosamente você o manipula e o desarma. Ele não será aberto.
Jogador: Legal, vamos seguindo. Vou na frente procurando por mais armadilhas.

Estilo Old Schoool:

Mestre: Um corredor longo segue à frente de vocês e termina em escuridão.
Jogador (jogando com um ladino): Vamos andando em frente, cutucando o chão e as paredes com a parte de trás da lança.
Mestre: Calma, vocês perderam a lança lá atrás quando enfrentaram o ídolo de pedra. [se o grupo tivesse essa lança ainda, eles teriam detectado a armadilha]
Jogador: Eu não perdi a lança para o ídolo, eu só perdi a ponta dela.
Mestre: A quebra não foi só a ponta… O que sobrou não é muito maior do que uma espada longa.
Jogador: Droga… Bom, ainda acho esse corredor suspeito, posso dar uma olhada no chão e nas paredes por alguma fissura ou detalhe que chame a atenção?
Mestre: Têm diversas fissuras no chão e nas paredes, você não consegue distinguir nada de anormal. [um narrador diferente poderia dizer que o jogador encontra a armadilha ao andar cuidadosamente olhando cada detalhe antes de dar um passo]
Jogador: Certo, pego o meu cantil e jogo a água por todo o chão. Eu a vejo escorrer por algum buraco ou seguir algum determinado caminho?
Mestre: Sim, a água parece formar uma poça sobre um determinado tijolo do chão que é mais rebaixado que todos os outros e também começa a sumir pelas beiradas dele.
Jogador: Parece que tem uma armadilha, então?
Mestre: Pode ser…
Jogador: Consigo desarmá-la?
Mestre: Faria isso como?
Jogador: Tem alguma jogada que posso fazer para desarmar o mecanismo?
Mestre: Você não vê mecanismo nenhum. Se for uma armadilha e algum de vocês pisarem, provavelmente vão ativar.
Jogador: Bom, vamos só contornar essa pedra e andar procurando por outras com o mesmo desnível.
Mestre: Vocês a contornam, então, e seguem o caminho…

2. Habilidades do jogador, não do personagem (“Player Skill, not Character Abilities”)

Isso deve ter ficado implícito do primeiro princípio, mas é preciso ressaltar: as habilidades dos jogadores são mais valiosas que as do personagem.

No RPG Old School os personagens não têm habilidades que os deixem automaticamente passar em um eventual teste, poderes que os fazem perceber coisas ou perícias que facilitam suas ações. Os jogadores terão de achar uma forma de passar pelo guarda sem usar “enganação”, de perceber que estão sendo seguidos sem “passar em um teste de percepção”, de convencerem o nobre a lhes dar convites para a festa sem um teste de “sedução” ou “lábia”.

3. Heroico, não super-heroico (“Heroic, not Superhero”)

Personagens Old School não são absurdamente poderosos. Ainda que tenham habilidades fora do comum, eles não têm super-habilidades ou atributos extremamente elevados. O heroísmo deles gera riqueza e fama e por mais elevado que sejam seus níveis, eles sempre terão chance de morrer facilmente em um combate.

O intuito de RPGs OSR é que a aventura leve pessoas comuns a se tornarem reis e feiticeiros famosos e não guerreiros lendários capazes de derrotar sozinhos um dragão ou um exército. O Quick Primer traz uma analogia interessante com quadrinhos para ilustrar isso: nenhum personagem se tornará o Superman, no máximo o Batman; o Batman é o objetivo final, não o princípio.

Uma arte ilustrativo do documento A Quick Primer for Old School Gaming.

4. Esqueça “balanceamento de jogo” (“Forget ‘Game Balance’”)

Jogos Old School fomentam fantasias que tenham perigos e contradições intrínsecas, o que significa que os desafios enfrentados pelos personagens não são propostos necessariamente conforme o nível deles. Claro, o Mestre não deve simplesmente colocar um dragão ancião na frente de personagens nível baixo só por estar jogando um sistema OSR, mas deve existir algum dragão ancião no cenário e se os personagens por acaso se dirigirem ao covil dele sem saber que estavam fazendo isso, bom, terão que dar um jeito de passar pela criatura.

Em termos de mecânica de jogo isso pode ser mais bem exemplificado no fato sistemas OSR costumarem dar pontos de experiência por sobreviver a um desafio e não por derrotar a fonte dele, ou seja, um personagem matar esse dragão ancião ou fugir covardemente dele após ele o ver garante exatamente a mesma quantidade de pontos de experiência.

Essa dinâmica de jogo dos sistemas Old School faz desafios e combates terem um nível constante de dificuldade e letalidade. Sempre haverá uma forma de os personagens morrerem, por mais simples que for o desafio.

JOGANDO UM RPG OSR

A uma primeira vista, você pode imaginar que jogar um sistema Old School Renaissence pode ser simplista e limitador, pois não é possível criar personagens muito diversos, combinar classes e raças, desenvolver habilidades e porque tudo é gerado aleatoriamente sem balanceamento algum. Não se engane, é exatamente por esses detalhes que a jogabilidade de RPGs OSR é vasta.

A abordagem OSR procura incentivar que os jogadores não se limitem às habilidades de seus personagens. Eles podem fazer tudo, desde que plausível (e o dado ajude). Não precisa o ladino procurar por armadilhas ou evita-las caso encontre alguma, um clérigo pode fazer isso, basta seu jogador ter essa ideia. Se os jogadores quiserem ou tiverem que desarmar uma armadilha, entretanto, aí sim um ladino terá vantagem.

A aleatoriedade e o desequilíbrio de desafios ajudam nisso. O jogador terá de se virar com seu guerreiro com bônus de Força -1 contra o gigante que ele sem querer irritou ao entrar desavisadamente em seu território. Na vida real nem sempre temos o que precisamos ou somos como gostaríamos, mas ainda assim com os poucos recursos que dispomos damos um jeito de superar obstáculos (os quais não são “equilibrados para nosso nível”), então por que não se propõe a fazer o mesmo ao jogar RPG?

Por fim, RPGs Old School desencorajam aventuras planejadas de forma episódica, deixando tudo para ser improvisado, ainda que seja possível criar uma trama maior por trás de tudo. Raros são os sistemas que trazem um cenário pronto e aqueles que o fazem o deixam aberto e genérico sem definir coisas como um vilão máximo ou nações grandiosas. Idealmente, um cenário OSR abraça o conceito de que pessoas comuns vivem e morrem próximas de seu local de nascimento, pois viajar é caro e perigoso, e que se mudar para um simples povoado novo já seja o suficiente para encontrar uma nova cultura.

ALGUNS SISTEMAS OSR

Se curtiu a proposta, seguem aqui algumas recomendações de sistemas Old School:

Caves & Hexes: sistema brasileiro, desenvolvido pela turma referência em OSR por aqui nas terras tupiniquins. Ele é totalmente desenvolvido de forma aberta e sua SRD (System Reference Document), ou seja, a íntegra de suas regras, está disponível aqui: https://cavesandhexes.com/

DCC – Dungeon Crawl Classics: um sistema maluco onde o atributo Sabedoria não existe, pois deu lugar a Sorte, você usa, além dos tradicionais, dados de 3, 5, 7, 14, 16, 24 e 30 faces e sempre que seu personagem lançar uma bola de fogo algum efeito bizarro pode acontecer junto (talvez sapos caiam do céu, ele passa a falar com voz demoníaca pela próxima 1h ou apareçam quatro cópias dele próprio em sua volta, talvez nada além da bola de fogo mesmo…), além de que fazer isso com um resultado 15 na rolagem significa lançar uma bola de futebol de fogo, mas com um resultado 30 uma genki dama. Meu OSR favorito! Foi trazido para o Brasil pela New Order, mas este ano será republicado e terá continuidade pela Sagen.

Espadas Afiadas & Feitiços Sinistros: sistema criado pelo brasileiro Diogo Nogueira para fantasia medieval e trazido para português pela Pensamento Coletivo. Na pegada OSR ele também lançou Dark Streets & Darker Secrets, para terror sobrenatural contemporâneo e Solar Blades & Cosmic Spells, para ficção científica futurista, estes disponíveis somente em inglês.

Forbidden Lands: recentemente traduzido para o português pela Sagen, os jogadores jogam em um mundo amaldiçoado com personagens assassinos e ladinos que buscam acumular riquezas e demarcar território. O sistema tem perícias e talentos e não se utiliza de d20, mas mesmo assim a proposta dos princípios, bem como os demais pontos, se mantém. Recentemente a Sagen trouxe o sistema para o Brasil e as regras completas do sistema podem ser obtidas gratuitamente no guia rápido de jogo disponibilizado pela editora nesse link aqui.

Lamentations of the Flame Princess: sem tradução para português ainda, é um sistema OSR voltado para o terror com pitadas gore. O livro de regras sem ilustrações pode ser adquirido gratuitamente aqui no DriveThruRPG.

Old Dragon: sistema brasileiro, publicado pela editora Buró, que permite combinações de raça e classe e tem uma relativa customização do personagem quando ele atingir os níveis 5º, 8º e 16º, mas ainda totalmente Old School. Ele também é um sistema desenvolvido de forma aberta e sua SRD pode ser consultada aqui.

OSE – Old School Essentials: é possivelmente a atual grande referência do OSR medieval. Também é produzido de forma aberta e sua SRD está disponível oficialmente nesse link aqui. Uma tradução não oficial da SRD pode ser encontrada aqui: https://ose-srd.netlify.app/. Ele será trazido para o Brasil pela Sagen em breve.