Mais que um hobby: RPG como terapia e seus benefícios
O tipo de jogo tão amado por fãs fiéis desde sua criação começa a se mostrar uma ferramenta terapêutica capaz de nos ajudar em situações da vida real
Quando se fala em RPG, principalmente no contexto de um hobby, nosso primeiro instinto é o de justificar a vontade de jogar com a promessa de diversão; afinal, é um jogo. E essa ideia está completamente certa – mas e se os propósitos e consequências dessa atividade que se manteve adorada por um público crescente nas últimas décadas fossem mais profundos?
Isso nem é desculpa para poder jogar mais! Hoje em dia, muitos psicólogos e pesquisadores de comportamento humano acreditam no potencial do RPG como terapia. O grupo RPG Therapeutics LLC, fundado por Hawke Robinson, existe como uma ferramenta para o avanço desse tipo específico de terapia. Robinson, depois de ser apresentado à versão original de Dungeons and Dragons, começou a pesquisar sobre os efeitos de vários tipos de RPG de mesa com diferentes públicos. Passou a jogar com idosos em casas de repouso, crianças em escolas e até com população encarcerada. Em 1990, Hawke Robinson passou a trabalhar oficialmente na área da saúde como assistente de enfermagem certificado e terapista de habilitação. Em 2004 seu website foi criado e o fundador investiu em pesquisa sem fins lucrativos sobre RPG, implementando programas terapêuticos de RPG em universidades e outras organizações.
Essa história mostra o potencial do hobby de RPG como uma forma de ajuda social. Hoje, o RPG Therapeutics LLC continua o trabalho de Robinson em maior escala, oferecendo uma variedade de programas terapêuticos que utilizam música e o Role Playing em várias formas – TRPG (Tabletop), Live-action (LRP/ Larp), Eletrônico (ERPG) e híbridos (HRPG).
Historicamente, o estereótipo do jogador de RPG tem sido aquele do “introvertido” – um fato interessante já que o RPG, em si, se trata de uma atividade que exige trabalho em grupo, criatividade e cooperação. Assim, possui as características essenciais de uma técnica terapêutica. É com base nessa teoria que foi criada, em 2013, a Wheelhouse Workshop. Adam Davis, que é membro da Associação Norte Americana de Terapia de Drama, possui mestrado em Educação com foco em Terapia por Drama pela Universidade Antioch de Seattle; Adam Johns se formou em psicologia pela Universidade de Arizona, também possui mestrado em terapia familiar e de casais pela Universidade de Antioch. Juntos, os dois resolveram criar um projeto pelo qual pudessem ajudar pessoas por meio de um jogo que também amavam.
Hoje em dia, os grupos de jogo da Wheelhouse Workshop foram transferidos e são fornecidos por uma organização sem fins lucrativos criada por Johns e David mais recentemente, a Game to Grow. A Game to Grow surgiu como uma “evolução” do projeto anterior com o objetivo de alcançar mais pessoas. O trabalho e os ideias dos fundadores, no entanto, continuam os mesmos: segundo eles, os dois “usam o RPG Tabletop para ajudar jovens, adolescentes e adultos emergentes a se tornarem mais confiantes, criativos e socialmente capazes”. De acordo com Johns e Davis, os jogos de RPG ajudam os jogadores a aprender a ver as perspectivas dos outros; desenvolver empatia; desenvolver habilidades de liderança; melhorar sua tolerância à frustração; desenvolver habilidades criativas de solucionar problemas e cultivar habilidades de comunicação e colaboração.
E esse tipo de terapia já chegou no Brasil! Germano Henning, no início de sua carreira, atendia como psicólogo do modo tradicional. Quando conheceu, em 2013, Túlio Andrade (também psicólogo além de mestre credenciado pela Wizards of the Coast), os dois desenvolveram um método de terapia em grupo baseado em RPG. Foi criado em São Paulo, então o grupo D20, com o objetivo de “desenvolver um mundo social melhor, onde as pessoas tenham relações mais verdadeiras, com mais sinceridade, transparência e respeito”.
Para entender a técnica, é preciso entender antes o conceito de gamificação: se trata do uso de mecânicas ou recursos de jogos para engajar pessoas a fim de alcançar um objetivo, desenvolver comunicação e motivar comportamentos, por exemplo. A gamificação é essencial porque ela, junto a dois outros fatores – o conceito de terapia em grupo e de habilidades sociais – é o que forma a receita única desse tipo de tratamento. “A gente usa essa dinâmica de dramatização ou ensaio comportamental com foco específico nessa habilidade social”, explica Germano em entrevista à Nuckturp. “E a gente faz tudo isso em grupo usando ferramentas lúdicas”.
Algumas dessas ferramentas envolvem a transformação de tarefas reais em missões cujas recompensas podem beneficiar o personagem no jogo. Germano exemplifica: no caso de uma criança que se recusa a tomar banho, os terapeutas combinam que, se ela aparecer na próxima sessão de banho tomado, seu personagem ganhará um buff de +5 na rolagem de dados.
Mas isso só acontece depois de uma avaliação onde os terapeutas se informam sobre os interesses, diagnósticos e faixa etária do cliente. O indivíduo é então encaminhado para um grupo que seja mais adequado às suas necessidades. Os jogos são acompanhados e conduzidos por dois terapeutas, com aspectos especificamente construídos para trabalhar as questões dos clientes.
Germano deixa claro que o RPG é uma ferramenta para motivar as pessoas, e um aspecto importante para que isso aconteça é a imersão. Por isso, os mestres terapeutas manipulam o ambiente tanto fora quanto dentro da história. Com essas condições, a narrativa e os personagens se tornam cada vez mais importantes e reais para os clientes, se tornando, quando necessário, um reflexo da realidade; só que nesse reflexo, é seguro experimentar e fazer praticamente qualquer coisa que parece assustadora no mundo real. Um menino que tem dificuldade de falar em público, por exemplo, pode se beneficiar ao jogar um personagem guerreiro líder que precisa inspirar suas tropas. “O fato de ele usar o personagem como um centro de motivação ajuda ele a tentar falar mais forte”, diz Henning. “Então esse aspecto de controlar um personagem ajuda ele a poder ultrapassar algumas barreiras”.
Em “Therapy & Dragons: A look into the Possible Applications of of Table Top Role Playing Games in Therapy with Adolescents“, Raul Gutierrez menciona que um dos desafios no tratamento terapêutico de adolescentes é o de conseguir engajar o jovem; afinal, isso é essencial para que se tenha progresso. Discutir tópicos mais pesados pode ser desconfortável e difícil em uma sessão comum, mas o uso de um personagem no qual o paciente pode se projetar é capaz de, às vezes, ajudar nesse sentido.
Gutierrez nos lembra que, como essa é uma prática relativamente nova, muito estudo ainda precisa ser feito sobre o tema. Mesmo assim, em geral parece benéfico não apenas em situações individuais mas também em um cenário de grupo. O autor menciona o caso de um adolescente que era conhecido por ter problemas em se comportar durante as aulas, batendo e roubando dos colegas, e esse comportamento se refletiu no jogo; no entanto, no decorrer da experiência, o personagem do adolescente via claramente as consequências de suas ações na história. Segundo Gutierrez, isso mostra que “implementar essa intervenção com grupos adiciona uma camada de interdependência que pode ajudar a construir habilidades de um indivíduo baseadas no seu comprometimento a criar um grupo funcional” (tradução nossa).
Mesmo em uma esfera menos médica, porém, vimos que claramente o RPG é mais do que um hobby para muitas pessoas; ele pode se tornar uma parte especial tanto de nossas vidas pessoais quanto da vida em sociedade. Afinal, jogar RPG é explorar nossos instintos mais humanos. É um jeito de brincar com nossas expectativas sobre eles, além descobrir mais sobre nós mesmos por meio de parcelas nossas com as quais construímos novas histórias.
Contribuindo como válvula de escape e ao mesmo tempo como um exercício onde trabalhamos nossos medos, frustrações, desejos e desenvolvemos nossas habilidades e humanidade, o RPG permite que nós subamos de nível tanto no jogo, quanto na vida real. De quebra, ainda nos conecta a novas amizades e comunidades que às vezes se tornam nossas parties de aventureiros da vida real com as quais vivemos aventuras na mesa e além!
E você? O que o RPG agregou à sua vida? Como te ajudou a evoluir e se conhecer, ou simplesmente serviu como um refúgio em momentos difíceis? Conta pra gente!
BIBLIOGRAFIA
RPG THERAPEUTICS LLC. Disponível em: <https://rpgtherapy.com/> Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.
WHEELHOUSE WORKSHOP. Disponível em: <http://wheelhouseworkshop.com/> Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.
BLUME, Juliana. Psicólogos encontram no RPG ferramenta para motivar adolescentes e jovens. Hypescience. Disponível em: <https://hypescience.com/psicologos-encontram-no-rpg-ferramenta-para-motivar-adolescentes-e-jovens/>. Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.
GAME TO GROW. Disponível em: <https://gametogrow.org/> Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.
GUTIERREZ, Raul. Therapy & Dragons: A look into the Possible Applications of of Table Top Role Playing Games in Therapy with Adolescents. 2017. California State University, San Bernardino. Electronic Theses, Projects, and Dissertations. 527. Disponível em: <https://scholarworks.lib.csusb.edu/etd/527> Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.
CARVALHO, Rafael. O que é a gamificação e como ela funciona? Edools. Disponível em: <https://www.edools.com/o-que-e-gamificacao/> Acesso em: 23 de fevereiro de 2021.