Maresia e Ameaças – Cascata de Estrelas
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Capítulo 03
Cascata de Estrelas
Passei o resto da noite encarando o teto que descascava sobre minha cabeça. O ventilador rodava devagar com o vento que entrava pela janela meio torto. Mesmo com o ambiente ameno, um frio percorria minha espinha e o suor em meu corpo o fazia colar. Me virava na cama aflito, sem conseguir focar os pensamentos. Uma voz ecoava no fundo da minha mente, mas eu não entendia o que ela me falava.
Eram quatro da manhã quando me sentei na cama e acendi o abajur. No mesmo momento, algo me chamou a atenção: a luz do meu abajur brilhara também no reflexo do espelho que ficava ao pé da cama, mas ele brilhava do lado contrário. Veja, quando levantamos nossa mão direita na frente do espelho, nosso reflexo levanta a esquerda para ficar na nossa frente, certo? Mas aquela luz que se acendera do meu lado direito estava do lado esquerdo da cama no reflexo. Jurei, por um segundo, que estava sonhando.
Me levantei coçando os olhos, não entendia. Me aproximei e fiz o teste da mão para confirmar e meu reflexo ergueu a mesma mão que eu e não a de frente para mim. Num movimento, peguei a cadeira de madeira que estava ao meu lado e joguei contra a folha de vidro esperando-a espatifar, fazer um barulho estrondoso, os cacos voarem em minha direção… Mas a cadeira foi absorvida pelo espelho numa onda, como se boiasse num líquido prateado. Sentia a boca seca do tempo que estava aberta. Não era possível, era?
Pensei em ir embora. Já chega dessas loucuras… Já chega? Minha mente curiosa latejava observando as ondas se esticarem e meu reflexo me encarar invertido em relação a mim. Minha razão me esmurra com palavras firmes, “tenha bom senso, vamos embora enquanto ainda podemos!”, mas meu coração palpita um sentimento agitado, “podíamos ao menos ver o que tem do outro lado…” E eu segui o meu coração. Encostei na superfície gelada e senti aquilo me absorver como fez com a cadeira. Atravessei as ondas com certa vertigem, mas alcancei o outro lado sem problemas. E o outro lado era igual a esse.
Mais maltratado, talvez, mas era o mesmo quarto. Surrado, empoeirado, como se tivesse sido abandonado há muito tempo. Não tinham tomadas, mas quando encontrei as velas, fui surpreendido por um chiado ensurdecedor como um giz firmado sobre um quadro-negro, sem dó. E aquele barulho se arrastava pelos corredores em minha direção. Não pensei duas vezes. Corri para o guarda-roupas e encostei a porta o suficiente para me esconder, mas para conseguir respirar lá dentro. Uma fresta inevitável se fez ali pelo conteúdo que não foi planejado como função para o móvel, mas ela me ajudou a enxergar ao menos um pouco do que acontecia lá fora. O silêncio chegou… seguido do estrondo, do arranque da porta que voou até a frente do espelho de onde vim, travando no chão.
A criatura tinha uma respiração pesada. As mãos de dedos longos alcançavam até onde o corpo queria ir e o puxava fazendo com que a massa de metal esfregasse no chão. A coisa se aproximou o suficiente da fresta para que eu conseguisse ver seu rosto: não o tinha. Parecia que a pele que cobre a mandíbula fora cortada do resto e esticada até ser grampeada ao topo da testa. Os olhos tampados, a única parte visível eram os furos do nariz que bufavam na direção dos meus olhos. Sentia as pernas falhando, as mãos tremendo, um grito engasgado na garganta enquanto prendia a respiração. Tinha absoluta certeza que aquilo sabia que eu estava ali.
Num movimento, a criatura se arrastou até me dar as costas e esfregou suas partes metálicas até a porta. Foi embora se afastando pelos corredores. Sentei abraçando os joelhos dentro do armário sem coragem de sair. Soluçava baixinho, fechava os olhos por um tempo e me beliscava pedindo para voltar, para acordar, para sair dali. Mas nada me acontecia. Só existia uma opção para mim agora… Seguir em frente. Procurar um espelho ou algum lugar mais seguro nesse Inferno.
Abri devagar as portas surradas e saí devagar, evitando de fazer barulho. Com a respiração ofegante, fui até a porta para tentar tirá-la do lugar que encravara e voltar ao mundo normal por onde eu vim… Sem sucesso. O suor e a tremedeira nas mãos me fizeram vacilar e, num movimento rápido, um corte se abriu na palma da minha mão direita. Ardência e formigamento tomaram conta até o meu cotovelo. Caí sentado de novo, segurando a ferida, sentindo o sangue encharcar toda a minha roupa sem saber o que fazer. Já perdia as esperanças.
– Mas que merda, Thomas… Que merda… – olhava para os lados procurando qualquer coisa que me ajudasse – Vai acabar morrendo de sangrar ou aquela coisa vai comer você primeiro, seu idiota.
Puxei o colete que usava e o segurei o mais firme que podia. Respirei fundo e me levantei. Precisava conseguir ajuda. Me arrastando até a porta, olhei para o lado que a criatura partiu, mas não via nada. A escuridão reinava de um jeito que meus olhos não conseguiam se acostumar. Olhei do outro lado para encontrar um brilho leve, como uma luz no fim do túnel. Senti o músculo da bochecha contrair num sorriso esperançoso que não me pertencia e minhas pernas começaram a se mover na direção da luz por conta própria.
– Thommy… Venha. Aqui tem conforto, aconchego e tudo o que você mais gosta. Se entregue para mim… – uma voz suave chamava da luz… e meu corpo respondia.
Quando cheguei perto o suficiente, algo saiu da luz em minha direção. Desespero.
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