Contos

O Pequeno Mal

TRILHA SONORA

Malaquias estava jogado no chão, com o peito na terra marrom, pressionando a respiração que teimava em sair rápida demais, pesada demais, barulhenta demais. Ele conseguia sentir o cheiro forte da terra, o gosto forte, os grãos colados aos lábios. Os olhos vidrados para frente onde ainda fitavam os de Fabrício, abertos, estáticos, encarando-o, num ângulo estranho do pescoço. Seu amigo Fabrício estava ali, parado demais, morto incondicionalmente.

Ainda tinha o Pablo perdido em algum lugar daquele laranjal. Malaquias não conseguia ver nada a não ser a arborizada propriedade e a lua cheia no alto. Espectadora atenciosa.

Só o vento soprava, Subia-lhe um gelo na espinha. Entretanto, nada comparado ao grito do primo. Ao longe, Pablo parecia correr, gritando socorro.

“Não está longe…”. Levantou-se com as pernas bambas, limpando a terra da boca e dos olhos, os dedos feridos ardiam e da testa pingava o melaço vermelho em gotas fartas que marcavam o solo fértil.

O garoto só andou, olhando as fileiras de árvore. Nada se mexia, nem uma folha, nem um galho, mesmo com o vento presente. Aquele vento que fez Fabrício tropeçar, que fez Fabrício agora não mais respirar.

Malaquias engoliu seco e se afastou do amigo, tentando se guiar pelo grito de Pablo. Seus passos pesados deixavam pegadas de terra e vermelho, a testa doía e os dedos dormentes não permitiam fechar a mão completamente, muito menos segurar qualquer pedra.

Outro grito. Agora muito próximo.

Pablo surgiu, derrapando e correu em sua direção. Seu rosto de desespero, os joelhos ralados, a cara com terra… Vinha em completo pânico. Atrás dele o vento. O maldito vento!

— CORRE, PABLO!

O jovem disparou em fuga frenética. Tentou, mas no vento agarrou suas pernas e derrubou de cara numa rasteira desengonçada. A terra levantou a meio metro, formando um redemoinho que rotacionou nas costas do garoto. Pablo gritou. O redemoinho girava, os fiapos da camisa zuniam e se desprendiam como confetes, seguidos dos jatos de sangue que se espalhavam como um chafariz elétrico num jardim rico.

Malaquias observava tudo com terror, mas não conseguia andar, seus olhos gravavam a cena macabra de seu primo flagelado pelo vento.

Num grito maior de dor, o vento entrou pela sua boca, fazendo-o engasgar. Malaquias que antes ainda tinha forças para ficar em pé, caiu no chão. Pablo chorava sem mais gritar, só gemia enquanto a massa de ar penetrava sua garganta. Ele tremia, a mão a frente pedindo ajuda, os olhos maiores e molhados.

Até que desabou.

Pablo parou de tremer, de gemer e ficou olhando para o lado, na posição que estacionou no último segundo de dor. Agora parecia não sentir mais nada.

Malaquias paralisado ainda o chamou:

— Pablo…

Para sua maior surpresa e descrença, Pablo se mexeu. Tremeu a cabeça. Deu para ver a língua se mexendo. Algo saiu de sua boca.

Dois braços diminutos saíram da garganta, agarraram os lábios como a borda de um poço e projetou para fora uma figura pequena, de dois palmos e meio de tamanho, negro como carvão, de olhos vermelhos como o capuz que ostentava.

Saiu rindo, molhado pela saliva, olhando para frente. Com seu sorriso grande de dentes muito brancos, contrastando com a pele escura.

Totalmente fora do corpo de Pablo, exibia apenas uma perna, onde se equilibrava com habilidade, um cachimbo preso ao pescoço por um barbante cru, braços finos e um movimento lento e hipnótico.

Riu alto, como a cria de um pesadelo, aumentando o volume da risada até gargalhar!

Levou o cachimbo à boca. Tragou forte e soprou a fumaça, que se tornou uma lufada de vento. A fumaça perdeu cor enquanto formava de um tornado cinza. A estrutura de vento insólita, de um metro, dançou por uns instantes, raspando pelo corpo do menino antes de passar pela figura de capuz, absorvendo a criatura e partindo em direção a Malaquias.

O jovem acordou do transe, levantou-se e correu.

Correu muito.

O mais rápido que suas pernas trêmulas pudessem.

O vento vinha logo atrás, sem mexer nas árvores, mas gargalhando, gargalhando de forma demoníaca.


Este é um conto do livro Pensamentos Noturnos, uma coletânea de contos de suspense e horror que publiquei em 2012 e que logo receberá uma nova edição com contos inéditos!