Recobrando as forças
Por Alex
Um conto de Ephiro.
Toda a torre veio abaixo na mais alta hora da noite. Num assombroso som que alcançou centenas de metros pântano adentro, a torre de quatro andares erguida em uma única porção firme de solo foi abaixo, espalhando pedra, madeira e vidro por todo canto, espantando os animais e esmagando os mais lentos.
Adrakir observava atônita e tremendo a lenta nuvem cinzenta terminar seu movimento para cima e para os lados. Observava incrédula, com o único olho que restou, os escombros e a imagem que se formava. No seu peito, insistia um fiapo de esperança que haveria vida depois da derrubada. Apoiada em seu machado duplo, ela tentava sentir o cheiro de um dos seus. Sussurrou seus três nomes num apelo para Fallaratti conceder mais uma chance a todos.
Deu um só passo para descobrir que marcaria nos próximos dias. Nem mesmo os fortes braços conseguiriam retirar uma pedra da pilha naquele estado. Foi então que, de trás do amontoado, ouviu um som.
Passos, resmungos. Sussurrou em orc:
一 Obrigada, meu mestre.
* * *
O grupo estava sentado à volta da magra fogueira. Adrakir exibia a coragem das tribos das clareiras em recusar o pouco da bandagem que ainda restava. Assava um esquilo, dois sapos e uns cogumelos enquanto observava seu grupo. Não desejando demonstrar uma preocupação em excesso, mas sem mentir para si mesmo que nem todos possuíam o vigor de suas cicatrizes.
Prenassur Dedos-Mínimos exibia um estado tão ruim quanto Adrakir, talvez pior, os gnomos nunca ostentaram resistência formidável e, por isso, as bandagens nele foram mais necessárias. Ele seguia em silêncio, para a felicidade da patrulheira, contando o pouco dinheiro que conseguiu segurar com suas mãos pequenas do tesouro do louco da torre. Felizmente, conseguira surrupiar o medalhão com um rubi num golpe de sorte e agora exibia-o no pescoço. Valeria mais do que todo o atual dinheiro do grupo.
Melineva, cabisbaixa, preparava um composto em frascos sujos após aplicar as bandagens no ladino. Adrakir percebera, mas não teve coragem de comentar, que Melineva não trazia consigo seu grimório, seus anos de estudo nas páginas preparadas de puro linho. Sua família élfica ficaria inconformada em saber que o tomo do seu pai se foi.
De todos, Melineva saiu com pouco ou nenhum dano e se prontificou em retirar o clérigo do grupo na fuga.
一 Como conseguiu arrastar ele? 一 perguntou Adrakir sem saber como iniciar um diálogo na atual situação.
一 Só consegui 一 falou a elfa retirando pedaços de musgos das vestes e adicionando no frasco, evitando encarar a companheira.
Adrakir apertou os olhos. Não que desejasse realmente saber os pormenores do resgate, mas queria remover aquele silêncio incômodo e tentar mostrar que a missão foi bem sucedida.
Ou quase.
一 Vamos falar que o ajudante dele fugiu? 一 perguntou o gnomo sem tirar os olhos da moedas.
一 Aos infernos que ele fugiu 一 disse a meia-orc virando o espeto no fogo 一 Fui a primeira a sair e ninguém saiu depois. Ele ficou lá dentro…
一 Está lá dentro ainda… 一 completou a maga olhando para a torre.
O gnomo juntou todas as moedas e gemeu de dor. Colocou as mãos nas costelas e recebeu, do braço estendido da maga, o frasco com o extrato alquímico.
一 Terá gosto de catarro igual o outro? 一 reclamou antes de pegar o preparo; tomou num só gole 一 Que asco! É pior…
A elfa abaixou a cabeça querendo sumir. Até mesmo Adrakir notou que o motivo dela ainda ter feito um unguento é de se admirar já que suas receitas principais estão no tomo perdido. Prenassur percebera o que fez, abriu a boca para falar algo, mas o olhar da arcanista não era convidativo a desculpas naquele momento. Não querendo continuar a respirar o mesmo ar de sua gafe, o gnomo deitou rápido e não olhou para nenhuma das duas, se colocou com a cabeça próxima aos pés do clérigo que ainda jazia inconsciente.
Este, o mais fiel do grupo, dependeria da bondade do pântano em dar-lhe um descanso tranquilo até o próximo amanhecer e assim conseguir acordar com alguma energia para poder rezar pelo grupo.
一 Não terá efeito algum nele 一 falou a elfa 一 Devido a inconsciência longeva, então fiz uma porção do preparo para ti 一 estendendo a mão alva para a meia-orc.
一 Toma você. Eu aguento, Mel.
一 Não estou ferida como ti. Ao menos, não em minha casca. Aceite, ao menos, para recompensar minha ineficiência lá dentro.
Adrakir sentiu o peso novamente. A maga foi a primeira a cair e ser arremessada nas trevas no último andar, acordara na fuga com ajuda de Sir. Leodor, o clérigo, usando o pouco que restava de sua magia para erguê-la. Sua ineficiência contra o louco da torre custou não só um olho da meia-orc, mas seu próprio conhecimento arcano e, por consequência, a rara confiança familiar.
A patrulheira pegou o frasco sebento de água do pântano e bebeu sem cara feia, olhando nos olhos da elfa, até a maga virar para o lado, fugindo do olhar, para ela, talvez, inquisidor.
一 Vou ficar de guarda 一 avisou a patrulheira 一 Depois do seu momento de descanso, trocamos, certo?
A elfa confirmou com a cabeça e caminhou às margens do mato para jogar fora o resto dos musgos, galhos e bandagens ensanguentadas.
一 Mel, não se preocupe, a gente dá um jeito… Com o medalhão e com o dinheiro a gente consegue comprar um novo grim…
O reflexo do fogo no medalhão que Prenassur ostentava bruxuleou e, logo depois, o próprio gnomo tremeu. Seus braços e pernas magros tremiam, seu peito agitava-se, puxando ar, os olhos se abriram de repente como se pudessem rasgar o rosto para emergirem dele. Sua cabeça sacudia freneticamente batendo contra a pedra que ele usava como apoio.
一 Ei! Ladino! O que é isso?! 一 gritou Adrakir 一 Mel! Melineva! Prenassur está com alguma coisa!
A patrulheira se levantou num movimento largo, já para pular pela fogueira e chegar ao pequeno que se contorcia, mas suas pernas não obedeceram. Ela mergulhou sobre os assados, ficando com o peito exposto sobre a brasa fumegante, apagando o fogo com a própria pele.
O grito gutural cortou o pântano. As aves próximas voaram para a noite.
Adrakir rolou para o lado. Seu torso em carne, sangue e brasa a fazia ranger os dentes. Precisou de um tempo para respirar e entender a dor, para depois, ignorá-la. Não sentia as pernas, estranhamente, da cintura para baixo nada se movia. Se virou como pode e encarou o ladino parando de tremer, o que antes eram espasmos frenéticos se seguiram como movimentos finais. Dedos tortos, olhos abertos, boca espumando, sangue pelo nariz. O gnomoimóvel, com a cabeça para o lado, de olhos abertos para a patrulheira.
一 Nããããooo!
一 Pare de gritar 一 falou a maga atrás 一 Ele já foi, acabou.
一 Não! Não… 一 tentou se virar para encarar a elfa 一 O que está acontecendo, Mel? Explica! Explica!
A meia-orc não conseguia olhar para ela, não conseguia se virar, os braços estavam pesados. Esticou a mão para pegar seu machado e num baque seco, um cutelo desceu arrancando 4 dedos de uma vez. O grito novamente rompeu a garganta da ciombatente como um vulcão!
Melineva puxou o cutelo espalhando as falanges e logo foi para a outra mão, num mesmo golpe, dilacerando na metade, deixando para trás só o polegar. A patrulheira bateu com o rosto no chão, ferindo a testa, em agonia.
一 MELINEVA!!! Sua… Sua…
A maga afastou com os pés o machado do alcance da patrulheira e caminhou até o gnomo. Tirou a espada curta que ele carregava na bainha do pequeno e voltou.
一 Pode falar… Vai chamar de que? Vadia? Vaca? Você decide 一 a voz doce deu lugar a uma voz áspera 一 Pode chamar.
A espada desceu com as duas mãos na nuca de Adrakir.
A alta elfa limpou a testa de suor e no movimento, toda a imagem se desfez. A maga alva e frágil deu lugar a um humano pálido, careca, com brincos em uma das orelhas e uma tatuagem no pescoço que descia até as costas.
一 Pronto? 一 chutou a meio-orc no braço 一 Foi.
Caminhou para o clérigo inconsciente, sentou ao seu lado, de frente para seu pescoço.
一 Tolo é aquele que segue os deuses opressores 一 falou arrancando o medalhão sagrado que o clérigo levava ao pescoço com o símbolo de Ephir de um lado e de Ideen do outro, arremessando na floresta tão forte que o ombro estalou 一 Tolo é achar que os oprimidos não podem reagir.
Se abaixou, retirando a bata que usava, deixando o torso exposto:
一 E vocês achando que a elfa saiu viva. Ainda está lá dentro. Embora eu desejasse uma elfa para oferecer. O Senhor me abençoou com você caindo, sacerdote. Quem sabe não fosse o único a conseguir perceber tudo.
O homem retirou uma lâmina pequena e reta das suas vestes.
一 Aquela monstruosidade imbecil 一 apontou para a patrulheira 一 é fácil de enganar; já o ladrão se preocupa tanto com o dinheiro que esquece do essencial. E você…
Ergueu para o alto a lâmina com as duas mãos contemplando a luz da noite.
一 Serpaktus, senhor dos senhores, dominador dos mais capazes e tutor dos poderosos, que minha falha com a torre que jaz nas minhas costas seja feita em boa troca a vida desse servo dos inimigos. Que receba esse presente de mim, Cavir, fiel até o fim dos meus dias. Que sua vontade seja feita e seus domínios se espalhem… 一 e desceu a faca 一 …e conte comigo sempre.